Judas é um personagem sem história. Com exceção de 15 citações
nos evangelhos canônicos e algumas outras no Atos dos Apóstolos, quase não há
registros de seu passado antes de conhecer Jesus. Ao contrário de apóstolos
como Pedro, que era pescador, ou do cobrador de impostos Mateus, a Bíblia não
conta de onde ele veio ou como ganhava a vida. Um silêncio que não chega a
surpreender. "Pouco se sabe sobre Judas porque os evangelhos não tinham
compromisso com a história. Eram apenas textos para orientar os cristãos e
passar os ensinamentos de Jesus", diz Gabriele Cornelli, doutor em
ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo. E a orientação
oficial sempre foi clara: Judas era o vilão. E ponto final.
Ponto final para os fiéis, é claro. Para os pesquisadores, este
é apenas o ponto de partida para dúvidas que nunca foram respondidas. Algumas
delas: assim como os outros 11 apóstolos, Judas também teve um grupo de
seguidores? Quem eram eles? Há algum legado seu para o cristianismo? Qual foi a
relação dele com Jesus? Judas foi mesmo o vilão pintado pela Bíblia? As
respostas, como boa parte da história do nascimento do cristianismo, passam
mais por hipóteses que por fatos comprovados. Acredita-se, por exemplo, que
Judas era uma espécie de outsider entre os seguidores mais próximos de Jesus.
Seu sobrenome, Iscariotes, provavelmente é uma indicação da cidade em que ele
nasceu: Cariotes, ou Kerioth, ou algo bem próximo a isso – a vila nunca foi
localizada com precisão. Sabe-se que o lugarejo ficava perto de Hebron, uma
importante área urbana no sul da Judéia. Mas que estava a cerca de 5 dias de
viagem da Galiléia, região que abrigava o coração da religião que nascia, onde
viviam Jesus e seus outros 11 apóstolos (veja mapa no quadro acima).
E o que isso quer dizer? Que Judas pode ter sido uma figura
bastante importante para Jesus. Caberia a ele levar as pregações aos habitantes
da Judéia. E isso não era pouco. Vivendo no então principal centro político e
econômico de onde hoje fica Israel, os habitantes da região acreditavam ser
intelectualmente superiores aos moradores da Galiléia, considerados rústicos e
atrasados, quase caipiras. O fato de Judas, um local, falar bem de Jesus pode
ter ajudado a abrir as portas da região para o líder forasteiro. "A existência
de um Evangelho de Judas leva a crer que ele teve seguidores e nos faz supor
que ele tinha forte influência na Judéia", diz Emmel.
Para entender como Judas podia ter uma "área de
influência" é preciso conhecer a estrutura do grupo de seguidores que
Jesus tinha ao seu redor. Eles estavam divididos em 3 círculos. No mais
distante, ficavam os ouvintes. Eles estavam em todo o território judaico e não
seguiam Jesus, mas eram simpáticos às suas pregações. No segundo grupo estavam
os discípulos, cerca de 70 pessoas que seguiam o mestre, ouviam seus discursos,
anunciavam sua chegada nas cidades, faziam algumas pregações em seu nome, mas
não tinham compromisso com Jesus. Foi desse grupo que ele escolheu 12 homens a
quem chamou de apóstolos (mensageiros, em grego). Eles formavam o terceiro
grupo e eram os mais fiéis. Faziam parte desse núcleo central os irmãos Pedro e
André, Tiago e João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, outro Tiago (que era
primo de Jesus), Judas Tadeu, Simão e Judas Iscariotes. "Jesus e os
apóstolos tinham uma relação de profundo respeito e amizade", diz o
historiador da religião João de Araújo.
Nesse grupo, alguns tinham papéis definidos. Segundo a Bíblia,
cabia a Judas a administração do dinheiro recolhido durante as pregações – uma
função que sugere a confiança de Jesus (mas que também pode nunca ter existido,
sendo acrescentada apenas para reforçar sua afeição ao dinheiro). A verba
arrecadada cobria o custo das viagens. "Jesus foi um líder
itinerante", diz Cornelli.
Na ausência do líder, seus seguidores trabalhavam
individualmente na busca por fiéis. "Jesus tinha muita clareza do que
estava fazendo. Ele organizou células no território judaico e compôs uma
estrutura que deu sustentabilidade ao seu poder. Isso explica por que o
cristianismo sobreviveu mesmo depois de sua morte", afirma o historiador
André Chevitarese, professor de história antiga da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Assim, é muito provável que cada um dos apóstolos tivesse um grupo
próprio de seguidores. Afinal, apesar de falarem em nome de Jesus, eram eles
que entravam em contato direto com as pessoas comuns. Davam conselhos,
pregavam, supostamente operavam milagres. E, obviamente, faziam isso a seu
modo: quem ouvia Pedro tinha uma visão diferente da dos seguidores de João ou
Tomé sobre os ensinamentos de Cristo.
Mais tarde, essas peregrinações individuais serviriam como a
semente que germinaria diversos cristianismos diferentes nos séculos 1 e 2 d.C.
– é isso mesmo que você leu, diversos cristianismos. Antes, porém, a nova
religião precisaria assistir a seu episódio mais emblemático.
Nenhum comentário:
Postar um comentário