quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Angústia é ganho




Ricardo Gondim

Nascemos entre a bigorna e o martelo. A noção de perigo nos acompanha pela vida e não demoramos perceber: somos mortais. De repente, damos conta: o oceano onde nadamos não tem porto. Sabedores do fim, cansados de nadar contra a maré, provamos um fel chamado angústia.

Não há como fugir, é o medo existencial que faz nascer a angústia. Dela vem o choro que nunca desengasga. A angústia é mãe de pequenos surtos depressivos – que jamais entristecem totalmente. Angústia dói em todas as línguas. E lateja feito dor de dente.

A vida não se deixa domesticar. Não há unguento que cure o sofrimento de existir. E depois de toda obra e toda aventura, sobra a única certeza: a guilhotina descerá no pescoço de todos.

Não se extirpa a angústia dos ossos, da pele, do coração. Não existe antídoto para sua peçonha. André Comte-Sponville afirmou que “somos fracos no mundo, e mortais na vida. Expostos a todos os medos. Um corpo para as feridas, ou para as doenças, uma alma para as mágoas, e ambos prometidos à morte somente… Ficaríamos angustiados por menos”.

A angústia nunca se deixa descobrir. É assintomática. Oxigênio algum resolve quando falta fôlego na alma. Inexistem saídas. Tudo termina em tragédia. Fernando Pessoa constatou sobrarem pratos na mesa. Era dia do seu aniversário e, triste, disse ser “sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio….”.

Todos vestirão luto um dia.

Pascal comparou o sentimento de angústia a homens acorrentados: “Todos condenados à morte, sendo todos os dias uns deles degolados à vista dos outros. Aqueles que restam veem sua própria condição naquela de seus semelhantes, e, olhando-se uns aos outros com dor e sem esperança, esperam sua vez”. No seu pessimismo, resta enlouquecer ou “ se divertir”. Numa equação shakespeariana: fuga ou loucura, eis a questão.

A modernidade tecnológica também se apropriou do jargão antigo:“Consumamos, consumamos, porque amanhã morreremos”. Nenhum país incorporou tanto essa ideia quanto os Estados Unidos. Lá virou o paraíso do consumo, a nova Roma para onde bárbaros desejam emigrar. Na América, rodam duas vezes mais automóveis per capita que o restante da humanidade. Gasta-se mais energia com ar condicionado que toda a produção energética da China. O desembolso com sapatos tênis fica em torno de doze bilhões de dólares. Mas, o consumismo desenfreado atual deixa as pessoas mais contentes ou felizes do que em 1954? Brinquedos caros ou baratos são impotentes para tirar a vontade de chorar.

Onde está a fonte da juventude eterna? A humanidade conseguiu adiar o dia fatídico. Os avanços da medicina se tornaram espantosos. Com o culto ao corpo, países ricos refizeram padrões estéticos. A beleza atual é bem diferente da medieval. A expectativa de vida aumentou mais nos últimos quarenta anos do que nos 4.000 anos precedentes. Cresceu de 53 anos – incluindo os países mais miseráveis – em 1960 para 67 anos em 2005. Uma criança nascida hoje viverá em média 122 mil horas ou 5,83 mil dias a mais do que uma, nascida há quatro décadas.



Um desdobramento negativo desses avanços é que as pessoas foram condenadas a passar mais tempo convivendo com a realidade.  A longevidade também faz crescer a angústia.

O mesmo soluço que afligiu filósofos gregos e salmistas judaicos soluça hoje. Mudaram os rótulos. Continuam as fobias do passado. O avanço da psicologia e o progresso da espiritualidade não desmentem que viver é um perigo. A força da angústia resiste a comprimidos e todas as alquimias.

Não sobram muitas escolhas. Jogados ao mundo, resta-nos aprender a viver.

O judeu itinerante, Jesus de Nazaré, falou coisas agradáveis, sem, contudo, evitar as antipáticas.  Sua mensagem convidou homens e mulheres a considerarem a vida como rara e imprescindível. Ao referir-se à verdade, ensinou a necessidade de enfrentar a realidade. Ele deixou as pessoas decidirem se queriam ou não lidar com a angústia. Não receitou fórmulas fáceis de como desatar os nós da alma. Seguidores e ouvintes deviam aprender a usar a força negativa da angústia em favor da felicidade. E não basta um estado transitório – estar alegre, feliz. A vida é um convite a ser.

Jesus acreditou que viver é somar pequenas decisões; é juntar experiências boas e más na construção do ser. Fiel à tradição do Eclesiastes, ele viu que só encontramos algum sentido mínimo de existir ao somarmos choros e risos, desejos e realizações, frustrações e sonhos.

Ninguém precisa exorcizar a angústia, que, assumida, gera sede de transcendência. A vida carece também de um lado sombrio para ser eterna. Além do mais, a angústia garantiu a sobrevivência da espécie. Só os angustiados buscam companhia. A angústia fez com que os primeiros seres humanos desejassem viver em sociedade. Ao notarem que eram frágeis e iguais no sofrimento, deram as mãos.

O grito que se ouviu no Calvário – Eli, Eli, lamá sabactini?, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” – tornou-se o grito de toda a humanidade. Os lábios de Cristo passaram a representar os negros que morreram em navios fétidos, as mulheres perseguidas na Inquisição, as crianças que se exauriram em trabalho escravo, os curdos que nunca tiveram pátria. O filho de Deus desentranhou a sua angústia, que ressoou pelos quatro cantos da terra, e passou a ser o grito de todos. Cravados com ele no madeiro da solidão, seguimos o seu exemplo e encaramos qualquer sina – Ele é autor e consumador da fé.

 Soli Deo Gloria

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

AS FOGUEIRAS DO REINO





O melhor e mais importante de nossa história resulta dos planos que não deram certo. E esta é a descoberta que nos atordoa e redime.

Em um mundo de liberdades, o incerto e o imprevisível criam o espaço mais doloroso, e mais rico. Naquilo em que nos tornamos, somos desenhados, com uma freqüência surpreendente, pelas linhas oblíquas de nossos projetos frustrados.

Ele desfila expectativas, propósito e determinação nos caminhos que inauguram seu Reino. É possível ver em seus olhos o foco intransigente de quem acredita com força e urgência em sua utopia. E para toda utopia há uma estratégia tão rigorosa quanto crédula. O Reino virá agora, eis sua paixão. Israel, reinventado, inaugurará a política que salvará o mundo e a Torá, reinterpretada, encantará as nações da Terra. Para uma nova  política, um novo rei. Para uma nova religião, uma nova pedagogia.
A fé encontrará novos sentidos, frutos de uma leitura imaginativa e de uma pedagogia que dialogará com o mundo concreto. As parábolas recontarão a história da humanidade.

O tempo é fermentado pelos que tem fome e sede de justiça. Os que choram inspiram uma nova pregação. Os pobres enfileiram os que tomarão com a força de sua necessidade o destino dos povos. Os mansos darão o ritmo dos que sobreviverão para herdar a Terra. Eis o novo Reino e sua bem-aventurança!

 esta ingênua determinação explica o deslize deselegante com aquela desgraçada. Desesperada, mas sirofenícia. E este era seu defeito. Persegue Jesus e os discípulos aos gritos. Fresca na memória a advertência de que sua missão era com os filhos de Israel, aqueles pedidos incomodam mais do que deveriam. Mas a mulher teima como insistente é sua tragédia. Tem uma filha possuída pelas forças do mal. Seu grito é finalmente silenciado por uma truculenta, mas previsível resposta. O pão da mesa é dos filhos e não dos cachorrinhos.

Os que não carregam a oportunidade estratégica da etnia terão sua vez, mas não agora. Ele acredita que um novo mundo virá depois de uma nova etnia. Mas a réplica de uma mãe histérica é a fissura inevitável na lógica encantada pelo grande plano. Os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa. Logo se descobrirá que aquela piedosa mesa, tão fartamente servida, jamais saciará. O sentido da revolução pretendida por Jesus não será o do farto pão à mesa, mas o das involuntárias migalhas. Do chão dos esquecidos. Dos que carecem. Dos que estão à margem. Só eles poderão entender o evangelho. As migalhas no chão saciarão mais que o pão na mesa.

Aquele instante é ainda a réstia da grande luz, que iluminará pela dor da decepção um novo horizonte para seus empenhos.

Não foi preciso muito tempo para ver seus planos esbarrarem nas estruturas adoecidas da política e da religião e descobrir seu projeto como remendo novo em pano velhovinho novo em odres velhos. Assistir àquele a quem mais se admira com a cabeça presenteada em uma bandeja de prata expôs a desproporcional força e patética dos que amam o poder. Os espaços do mando sempre guilhotinam os que não vestem suas máscaras.

Ser amado pelo pão que multiplica em detrimento da injustiça que subtrai custou o desencontro insuperável com as multidões. Convergir adeptos é sempre distorcer sentidos.
Assistir aos seus gestos de misericórdia agredirem os escrúpulos dos que frequentam o templo mostrou-lhe as vendas religiosas que cegam a fé. Sempre que um dogma precisa ser salvo, um aflito acaba esquecido.

Estes foram os dias da grande decepção. Aqueles que jamais terminaram de tão definitivos para o evangelho de Jesus. A eles deve ter se referido João quando retratou a história do Filho de Deus. Veio para os seus, mas os seus não o receberam. E a todos os que o receberam deu-lhes o direito de serem chamados filhos de Deus. Desde os dias funestos, não se viu mais Jesus nos mesmos lugares. A casa do pecador tornou-se seu espaço de comunhão. Todos foram para o templo, mas ele foi visto em um lugar estranho, nos pavilhões indesejados do Tanque Betesda. Ao escapar das multidões e seus desencontros, a casa de um maldito, o publicano Zaqueu, tornou-se a sua. Sua fama agora é de quem gosta das festas, com suas comidas, bebidas e gente despretensiosa e livre.

Na cruz morre um homem porque não quis ser o que seu mundo lhe impôs. Mas também, e na mesma cruz, morre o homem que Jesus nunca foi. Termina na cruz, porque é assim que se faz com os que destoam. Termina na cruz a imagem colada pelos seguidores em seu líder. Talvez apenas este paradoxo explique o estranho fenômeno de desconhecimento que acompanhou os dias do Cristo ressurreto entre os mais íntimos.

Maria o confundiu com um jardineiro atrevido, provável responsável pelo sumiço do corpo do Mestre amado. Os discípulos de Emaús o confundiram com um judeu mal informado sobre os acontecimentos de Jerusalém. Os discípulos o tomaram por uma ameaça ao refúgio para os perigosos dias que seguiram sua morte. Os que mais o conheceram não conseguiram reconhecê-lo. Não será porque o Cristo glorioso, aquele do grande plano, fora desconstruído rumo à morte na cruz? E este, que agora vêem, não será aquele que não conseguiram, mas deveriam, enxergar o tempo todo?

Naquele dia o mar não estava para peixes. Nada muito novo na árdua tarefa dos que pescam. Ele caminha na praia como quem espera ansioso pela volta dos que deveriam trazer os peixes. Aflito, sem poder esperar mais, vê os pescadores voltarem aos poucos com os barcos vazios. De longe ainda, pede peixe. Ninguém o reconhece. Antes que desistam totalmente da pesca, ele fala como quem sabe e aponta aonde entende que os peixes estão.

Pescadores desapercebidos lançam as redes e, finalmente, o reconhecem. Quem sabe depois de Pedro se lembrar de outra pesca prodigiosa orientada pelo Rabi? É Jesus? Mas é outro. Mas é Jesus. Pula do barco e, às braçadas, desliza saudoso em direção ao não mais tão estranho assim. Na areia, as brasas já assam alguns peixes e pães. O cheiro doce da comida dissolve apreensões. Um a um, todos chegam, sentam-se e comem. A comida espalha endorfina e relaxa o corpo outrora teso e o calor da fogueira espanta o frio doído da brisa que já sopra no fim do dia. Logo a adrenalina daqueles dias dá lugar ao prazer, as palavras antes engasgadas, ficam fluidas e os sorrisos, tão raros ultimamente, retornam fáceis.



Encantado observo, mesmo que inseguro. A cena é constrangedora, mas também é a indicação de um livramento. O Reino do Cristo está ali, aquecido por aquela fogueira, feito de uma gente despida de qualquer imponência ou virtuosismo. Pondero abismado enquanto passo os olhos no grupo. O líder, alguém que acabou de passar por uma terrível humilhação pública. A multidão desistiu dele e de seu fosco projeto de Reino. Pedro, não conseguiu ser leal na hora mais aflita do anunciado, mas desprestigiado amigo. Os Filhos de Zebedeu, João e Tiago, brigaram por espaço e pompa até há pouco. Nós, os demais, dispersamos confusos e amedrontados no momento mais tenso da trajetória. E há um terrível vácuo, uma ausência amarga, um companheiro, antes tão presente, não está mais ali. Ele preferiu desistir da vida a encarar sua fraqueza. Amigos precários, mas amigos. Reunidos pelo breve e fugidio tempo de uma brasa. Sagrando os afetos com comida e conversa. Este é o Reino. Este é o evangelho que contagiará inalcançáveis almas.

Barriga cheia. Conversas fartas de memórias. Cristo chama por Pedro. O nome destacado na roda poderia indicar um grave e adiado acerto de contas. Ainda pairam dúvidas. Ao contrário do que poderia se imaginar, Jesus não pede explicações pelos tropeços, nem suscita grandes promessas para novas e também grandes expectativas. Não oportuniza um pedido formal de perdão. Ah! Nossos ritos de perdão! Fragmentos do grande plano. Pedimos perdão como quem pode retomar a fantasia de não mais frustrar. Perdoamos e iludimos novamente nosso coração com a panacéia de amigos que não decepcionam. Mas nada disso acontece ali. A pergunta é tão singela e quente e saborosa quanto à comilança em torno da fogueira. A brasa crepita e pausa os assuntos. Pedro, você me ama? A resposta é tímida, mas fluente. Você sabe que te amo! Pergunta e resposta se repetem como em um diálogo dramático. Num só lance e roubando o fôlego. E aos três movimentos modestos e teatrais de amor, um pedido despretensioso se segue: cuida das minhas ovelhas. E todos respiram aliviados.

Desde então, sempre que homens e mulheres se reúnem para comer e beber e conversar esquecem-se das grandes utopias e suas perversas expectativas, tornam-se mais amigos e amantes, cuidam-se como pastores de suas ovelhas e Jesus volta e seu Reino e seu Deus.

Colunista no blog Mundo Da Anja(link)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

FÉ, LEI E REI



Gostava da época da inocência, aquela em que não éramos obrigados à fé, nem à lei, nem ao rei! Coisas de índios, diriam alguns, afinal, gente civilizada tem fé, lei e rei... E, de fato, essa foi uma sentença da coroa portuguesa, nossos colonizadores civilizados, contra os nativos que não se deixavam dominar...

Aliás, é por se acreditar em tantas coisas, que uma série de outras são instituídas em regras e, geralmente, com um, em que também, acredita-se ser destaque, superior em hierarquia. Acredita-se, acredita-se, acredita-se... Contudo, na inocência era a amizade que prevalecia! Amizade: palavra, sentimento, atitude; que, enquanto mais fé, lei e rei, mais é esquecida. E como poderia ser diferente, se essa lição vem da própria fé?

Amizade pressupõe confiança, é um sentimento de lealdade e de afeição, mas a fé nos diz que é maldito o homem que confia no homem! A fé, a lei e o rei não reconhecem alteridade, sobrevivem de imposições, cogentes; sem rosto, abstrato e sobreano beiram ao fantástico, ao fanático, e tudo que é nominado, por eles, jamais o será de amigo, porque, primeiro, quis-se a posse, a sujeição.

Quem tem fé na amizade, não tem um amigo, afinal, fé é certeza de algo que se espera e confiança em algo que não se vê, mas quem tem um amigo não espera nada e sempre confia no que se é, no que se vê! Há pessoas que dizem que ter amizade com fulano ou sicrano é de lei... Então, fulano e sicrano não são amigos, pois a lei é erga omnes (atinge, obriga a todos), mas o amigo, não atinge, nem obriga, é inter partes e ergue o homem, na sua dignidade e afeição, sem obrigá-lo a nada e nem sujeitá-lo. Já vi pessoas que tratam ao outro  de “meu rei”, pude concluir que não são amigos... Afinal, um amigo não é um nobre, um sobreano, que exige devoção, submissão e reverência, mas o amigo é uma extensão do amor próprio que primeiro cultivamos em nós mesmos, e ofertamos ao outro que elegemos em nosso afeto e lealdade, sendo tal sentimento mútuo.

Tenho saudades da inocência, quando não sabia nada de fé, de lei ou de rei, mas apenas me regalava com a presença de meus amigos... Época em que ser cúmplice era o suficiente para sermos felizes, em que um sorriso sincero, presente e satisfatório valiam mais que mil palavras... Época que mil palavras, que saiam da boca do amigo, traziam completude e alegria... Sem esperança de nada, pois nada escolhíamos esperar; sem regra de nada, pois a única real atitude estava baseada no respeito; sem se sujeitar a nada, pois tudo o que é significativo cria seu próprio espaço sem se valer da força ou da imposição.

Quanto à fé, à lei e do rei, a mim, já não me dizem nada...

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Se pudesse eu voltaria e você?



Se pudesse eu voltaria e você?

Se pudéssemos, o que faríamos?
Se pudéssemos será que voltaríamos no tempo?
Se pudéssemos… o que mudaríamos? O que diríamos?
Se pudéssemos faríamos diferente? Seriamos outros?
Se… o que mudaríamos? O que falaríamos? O que seriamos?

Mas não há como voltar, não há como refazer,
Não existe retrocesso no tempo.
Ele sempre caminha para frente, sempre a favor do vento.
Sempre anuncia uma nova estação,
Sempre faz da pedra pó, e o vento… leva!

Cabelos caem, pessoas envelhecem,
Pedras viram pó, mas o tempo não para!
Covarde que és! Não destes-me outra chance.
E as palavras… estas ficam! Sempre irão ficar
Palavras são mais! Muito mais que palavras…

Palavras machucam ou encantam,
Matam ou dão vida. Dê vida, não mate!
Palavras não são apenas palavras.
Podem ser como pregos martelados em madeira
Ou acalanto suave para a alma

Se eu pudesse eu voltaria… mas não posso!
E você, pode?…

Anderson L. de Souza


Anderson (mineiro) L. de Souza

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Se eu pudesse eu voltaria e voce? de Anderson L. De souza é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Brasil.
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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Gondim... mais uma vez de partida - Tempo de partir




Tempo de partir
Ricardo Gondim

Não perdi o juízo. Minha espiritualidade não foi a pique. Minhas muitas tarefas não me esgotaram. Entretanto, não cessam os rótulos e os diagnósticos sobre minha saúde espiritual. Escrevo, mas parece que as minhas palavras chegam a ouvidos displicentes. Para alguns pareço vago, para outros, fragmentado e inconsistente nas colocações (talvez seja mesmo). Várias pessoas avisam que intercedem a Deus para que Ele me acuda.

Minha peregrinação cristã está, há muito, marcada por rompimentos. O primeiro, rachei com a Igreja Católica, onde nasci, fui batizado e fiz a Primeira Comunhão. Em premonitórias inquietações não aceitava dogmas. Pedi explicações a um padre sobre certas práticas que não faziam muito sentido para mim. O sacerdote simplesmente deu as costas, mas antes advertiu: “Meu filho, afaste-se dos protestantes, eles são um problema!”.

Depois de ler a Bíblia, decidi sair do catolicismo; um escândalo para uma família que se orgulhava de ter padres e freiras na árvore genealógica – e nenhum “crente”. Aportei na Igreja Presbiteriana Central de Fortaleza.  Meus únicos amigos crentes vinham dessa denominação. Enfronhei em muitas atividades. Membro ativo, freqüentei a escola dominical, trabalhei com outros jovens na impressão de boletins, organizei retiros e acampamentos. No cúmulo da vontade de servir, tentei até cantar no coral – um desastre. Liderei a União de Mocidade. Enfim, fiz tudo o que pude dentro daquela estrutura. Fui calvinista.  Acreditei por muito tempo que Deus, ao criar todas as coisas, ordenou que o universo inteiro se movesse de acordo com sua presciência e soberania. Aceitei tacitamente que certas pessoas vão para o céu e para o inferno devido a uma eleição. Essa doutrina fazia sentido para mim até porque eu me via um dos eleitos. Eu estava numa situação bem confortável. E podia descansar: a salvação da minha alma estava desde sempre garantida. Mesmo que caísse na gandaia, no último dia, de um jeito ou de outro, a graça me resgataria. O propósito de Deus para minha vida nunca seria frustrado, me garantiram.

Em determinada noite, fui a um culto pentecostal. O Espírito Santo me visitou com ternura. Em êxtase, imerso no amor de Deus, falei em línguas estranhas – um escândalo na comunidade reverente e bem comportada. Sob o impacto daquele batismo, fui intimado a comparecer à versão moderna da Inquisição. Numa minúscula sala, pastores e presbíteros exigiram que eu negasse a experiência sob pena de ser estigmatizado como reles pentecostal. Ameaçaram. Eu sofreria o primeiro processo de expulsão, excomunhão, daquela igreja desde que se estabelecera no século XIX. Ainda adolescente e debaixo do escrutínio opressivo de uma gerontocracia inclemente, ouvi o xeque mate: “Peça para sair, evite o trauma de um julgamento sumário. Poupe-nos de sermos transformados em carrascos”. Às duas da madrugada, capitulei. Solicitei, por carta, a saída. A partir daquele momento, deixei de ser presbiteriano.

De novo estava no exílio. Meu melhor amigo, presidente da Aliança Bíblica Universitária, pertencia a Assembleia de Deus e para lá fui. Era mais um êxodo em busca de abrigo. Eu só queria uma comunidade onde pudesse viver a fé. Cedo vi que a Assembleia de Deus estava engessada. Sobravam legalismo, politicagem interna e ânsia de poder temporal. Não custou e notei a instituição acorrentada por uma tradição farisaica. Pior, iludia-se com sua grandeza numérica. Já pastor da Betesda eu me tornava, de novo, um estorvo. Os processos que mantinham o povo preso ao espírito de boiada me agrediam. Enquanto denunciava o anacronismo assembleiano eu me indispunha. A estrutura amordaçava e eu me via inibido em meu senso crítico. A geração de pastores que ascendia se contentava em ficar quieta. Balançava a cabeça em aprovação aos desmandos dos encastelados no poder. Mais uma vez, eu me encontrava numa sinuca. De novo, precisei romper. Eu estava de saída da maior denominação pentecostal do Brasil. Mas, pela primeira vez, eu me sentia protegido. A querida Betesda me acompanhou.

Agora sinto necessidade de distanciar-me do Movimento Evangélico. Não tenho medo. Depois de tantas rupturas mantenho o coração sóbrio. As decepções não foram suficientes para azedar a minha alma, sequer fortes para roubar a minha fé. “Seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso”.

Estou crescentemente empolgado com as verdades bíblicas que revelam Jesus de Nazaré. Aumenta a minha vontade de caminhar ao lado de gente humana que ama o próximo. Sinto-me estranhamente atraído à beleza da vida. Não cesso de procurar mentores. Estou aberto a amigos que me inspirem a alma.

Então por que uma ruptura radical? Meus movimentos visam preservar a minha alma da intolerância.  Saio para não tornar-me um casmurro rabugento. Não desejo acabar um crítico que nunca celebra e jamais se encaixa onde a vida pulsa. Não me considero dono da verdade. Não carrego a palmatória do mundo. Cresce em mim a consciência de que sou imperfeito. Luto para não permitir que covardia me afaste do confronto de meus paradoxos. Não nego: sou incapaz de viver tudo o que prego – a  mensagem que anuncio é muito mais excelente do que eu. A igreja que pastoreio tem enormes dificuldades. Contudo, insisto com a necessidade de rescindir com o que comumente se conhece como Movimento Evangélico.

1.     Vejo-me incapaz de tolerar que o Evangelho se transforme em negócio e o nome de Deus vire marca que vende bem. Não posso aceitar, passivamente, que tentem converter os cristãos em consumidores e a igreja, em balcão de serviços religiosos. Entendo que o movimento evangélico nacional se apequenou. Não consegue vencer a tentação de lucrar como empresa. Recuso-me a continuar esmurrando as pontas de facas de uma religião que se molda à Babilônia.


2.       Não consigo admirar a enorme maioria dos formadores de opinião do movimento evangélico (principalmente os que se valem da mídia). Conheço muitos de fora dos palcos e dos púlpitos. Sei de histórias horrorosas, presenciei fatos inenarráveis e testemunhei decisões execráveis. Sei que muitas eleições nas altas cupulas denominacionais acontecem com casuísmos eleitoreiros imorais. Estive na eleição para presidente de uma enorme denominação. Vi dois zeladores do Centro de Convenções aliciados com dinheiro. Os dois receberam crachá e votaram como pastores. Já ajudei em “cruzadas” evangelísticas cujo objetivo se restringiu filmar a multidão, exibir nos Estados Unidos e levantar dinheiro. O fim último era sustentar o evangelista no luxo nababesco. Sou testemunha ocular de pastores que depois de orar por gente sofrida e miserável debocharam delas, às gargalhadas. Horrorizei-me com o programa da CNN em que algumas das maiores lideranças do mundo evangélico americano apoiaram a guerra do Iraque. Naquela noite revirei na cama sem dormir. Parecia impossível acreditar que homens de Deus colocam a mão no fogo por uma política beligerante e mentirosa de bombardear outro país. Como um movimento, que se pretende portador das Boas Novas, sustenta uma guerra satânica, apoiada pela indústria do petróleo.

3.       No momento em que o sal perde o sabor para nada presta senão para ser jogado fora e pisado pelos homens. Não desejo me sentir parte de uma igreja que perde credibilidade por priorizar a mensagem que promete prosperidade. Como conviver com uma religião que busca especializar-se na mecânica das “preces poderosas”? O que dizer de homens e mulheres que ensinam a virtude como degrau para o sucesso? Não suporto conviver em ambientes onde se geram culpa e paranoia como pretexto de ajudar as pessoas a reconhecerem a necessidade de Deus.

4.       Não consigo identificar-me com o determinismo teológico que impera na maioria das igrejas evangélicas. Há um fatalismo disfarçado que enxerga cada mínimo detalhe da existência como parte da providência. Repenso as categorias teológicas que me serviam de óculos para a leitura da Bíblia. Entendo que essa mudança de lente se tornou ameaçadora. Eu, porém, preciso de lateralidade. Quero dialogar com as ciências sociais. Preciso variar meus ângulos de percepção. Não gosto de cabrestos. Patrulhamento e cenho franzido me irritam. Senti na carne a intolerância e como o ódio está atrelado ao conformismo teológico. Preciso me manter aberto à companhia de gente que molda a vida, consciente ou inconsciente, pelos valores do Reino de Deus sem medo de pensar, sonhar, sentir, rir e chorar. Desejo desfrutar (curtir) uma espiritualidade sem a canga pesada do legalismo, sem o hermético fundamentalismo, sem os dogmas estreitos dos saudosistas e sem a estupidez dos que não dialogam sem rotular.
Não, não abandonarei a vocação de pastor. Não negligenciarei a comunidade onde sirvo. Quero apenas experimentar a liberdade prometida nos Evangelhos. Posso ainda não saber para onde vou, mas estou certo dos caminhos por onde não devo seguir.

 Soli Deo Gloria

domingo, 12 de fevereiro de 2012

FOI ENTÃO QUE MARIA CHOROU...



By Daneiele F. Pusceddu



Maria, uma menina que nasceu pobre, sem muitas condições financeiras; condições essas que via em suas amiguinhas, por estudar, de favor, através de uma bolsa concedida por intercessão de uma assistente social às freiras de um colégio católico destinado à classe média.

Maria com seus cabelos longos, lisos, mas mal-tratados, ofuscados, sem brilho, o mesmo não brilho do seu olhar gélido sobre a escola fria, de valores frios, de homens frios e de mulheres, igualmente, frias, que viam nela mais um bichinho de estimação a que uma pessoa humana... Nada que se é dito conceitualmente, claro, mas que permeia silenciosamente o inconsciente dos ditos “homens de bens”, e que ainda conseguem se gloriarem por ser tão caridosos e cheios de amor!

Maria de pele parda e voz rouca, logo descobriria que as pessoas, podem e, invariavelmente, são cruéis, na tenra idade, na formação de seus nobres valores, em um colégio de pessoas ditas nobres... Em uma aula, não tinha caneta para suas anotações, e pediu emprestada a uma colega, o que não houve recusa, mas, de pronto, foi acusada de roubar os objetos pessoais da mesma, o que sem entender e ofendida, não argumentou nada em seu favor, preferiu o silêncio, ainda sem saber que ele é um Direito Constitucional! E a chorar na direção, quase perdendo sua bolsa de estudos, houve a absolvição. O padre diretor da instituição não havia acreditado no feito, contudo, preferiu conversar com a menina Maria, com a ingênua Maria...

O conselho do padre foi cruel, mas garantiria a sobrevivência da pobre menina: “você a partir de hoje só usará o que é seu, se você não tem caneta, não peça emprestado a ninguém, escreva com lápis, ou simplesmente não escreva... O que é seu é seu, o que dos outros, dos outros, e isso nos evitará problemas!”. Sim, Maria entendera o recado, muito além do que se possa imaginar, afinal, aquela pobre criança tímida compreendia que na sua vida tudo deveria ser com muito esforço e trabalho, nada seria tão fácil, e que as pessoas emprestam alguma coisa para as outras se nisso houver algum interesse comum, interesse que eles não tinham nela, salvo, pelo desejo incontrolável de terem-na como o objeto de escárnio.

Sim, Maria cresceu, de menina a uma linda moça pobre,  não tão ingênua quanto antes, iria descobrir  outra imperiosa lição, talvez duas! Com a puberdade, sim, às primeiras paixões e com elas as grandes decepções... Por Ronaldo se enamorou, e como todo adolescente amante, sonhou... Sim Maria sonhou muito, mas numa conversa que ouviu do pai do rapaz com seu filho, logo seu pranto foi verdadeiro. Um conceito estranho, entretanto soube que rico casa com rico e que os pobres, como Maria, só servem para se prostituírem, portanto ela deveria ser objeto de prazer para Ronaldo, mas nunca esposa, pois ele deveria se casar com uma mulher branca e de posses, de família nobre...

Com aquele velho olhar gélido, ao horizonte, entendia que a culpa sempre é das putas, e que essas são as que transam por pouco dinheiro, afinal, “mulher honesta” se casa por muito dinheiro... E que não importava o que fizesse, na sua condição financeira, ser puta sempre seria a grande possibilidade da maioria, ainda que não transasse, afinal, não sabia o porquê disso, apenas, sabia que era assim.

Maria não desistiu, formou-se no colégio, foi para faculdade, graduou-se em Direito, foi advogada e logo juíza... Maria não era mais pobre, nem bonita, afinal, estava linda, embora seu olhar gélido ainda pairasse sobre as pessoas e no horizonte... Maria não se casou, e nem queria...  Afinal, havia aprendido muito em sua infância e adolescência sobre a natureza humana da classe média! Maria se tornou rígida, e seguia o velho conselho do padre do que é seu é seu, dos outros, dos outros... Jamais pedia emprestado, ou conversava à toa, excelente profissional, extremamente competitiva, não se importava em ser simpática, apenas desejava ser admirada por sua competência, e isso, de fato, era!

Próximo à páscoa, Maria subia à rua de sua casa, quando de subido, estacionou seu carro e, com um olhar diferente do gélido, agora flamejante, intenso passou a observar duas crianças sentadas na calçada, duas crianças pobres, com uma marmita, e apenas uma colher, em que uma enchia a colher de comida, comia, e passava a outra, que o mesmo fazia, e assim se revezavam na única marmita com uma única colher! Maria desceu de seu carro importado, foi até o bar da esquina e comprou 3 litros de coca-cola e dois copos descartáveis, e deu aos meninos, que com olhar terno e um belo sorriso agradeceram a gentileza...

Maria entrou no carro e continuou a observar, os meninos encherem um copo de coca-cola e ignoraram o outro, e um dava uma golada e passava ao outro que o mesmo fazia... Com os olhos marejados, e um nó na garganta, Maria olhou profundamente para os dois, intensamente, foi então que Maria chorou..

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FOI ENTÃO QUE MARIA CHOROU.. de Daneiele F. Pusceddu é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Brasil.
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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O CREDO DE THOMAS PAINE*




Creio na igualdade do homem; e creio que os deveres religiosos consistem em fazer a justiça, amar a misericórdia e esforçar-se por fazer feliz o nosso próximo. Creio em um Deus, e nada mais; e espero alegria após esta vida.

No entanto, a fim de que não se suponha que eu creia em muitas outras coisas além destas, eu devo, no correr desta obra, declarar as coisas nas quais eu não creio e minhas razões para não fazê-lo.

Eu não creio no credo professado pela Igreja Judaica, pela Igreja Romana, pela Igreja Grega, pela Igreja Turca**, pela Igreja Protestante, nem por qualquer outra igreja que eu conheça. Minha própria mente é minha própria igreja.

Todas as instituições eclesiásticas nacionais, sejam judaicas, cristãs ou turcas, aparentam-me ser nada mais que invenções humanas, estabelecidas para aterrorizar e escravizar toda humanidade, além de monopolizar o poder e o lucro.

Não pretendo condenar, por meio desta declaração, aqueles que crêem de outra forma. Eles têm o mesmo direito às suas crenças assim como eu tenho às minhas. Mas é necessário à felicidade do homem que ele seja mentalmente fiel a si mesmo. Infidelidade não consiste em crer ou deixar de crer. Ela consiste em professar crer algo em que não se crê.

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"Meu país é o mundo, a minha mente é a minha igreja e fazer o bem é a minha religião." T. P.

** Islâmica

* THOMAS PAINE (1737-1809). foi um revolucionário e filósofo político anglo-americano. Participou ativamente do processo de independência dos EEUU, sendo considerado um dos fundadores daquela República. É um dos maiores defensores dos direitos humanos e das liberdades civis de todos os tempos.
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