INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA BÍBLICA
DEFINIÇÃO DE HERMENÊUTICA E EXEGESE
Hermenêutica é a ciência e arte da interpretação. Trata-se de um conjunto de regras e técnicas para a compreensão de textos. O termo vem do nome “Hermes” que, segundo a mitologia grega, era o mensageiro e intérprete dos deuses.
Uso da Hermenêutica
- Literatura grega – para conciliar o mito e a filosofia. Os filósofos passaram a ”interpretar” a mitologia ao invés de fazerem uma leitura literal, o que seria incompatível com a filosofia.
- Direito – os advogados aplicam a hermenêutica quando interpretam as leis.
- Bíblia – aplicamos a hermenêutica quando a interpretamos.
Exegese é a aplicação prática dos princípios e regras da hermenêutica.
NECESSIDADE DA HERMENÊUTICA
- A hermenêutica é necessária devido aos bloqueios à interpretação natural: distância histórica, cultural, idiomática e filosófica. Nossa postura cultural funciona como uma lente quando lemos a bíblia. Isto pode causar muitas distorções de sentido. A questão idiomática faz com que a relação entre conceitos e palavras seja diferente de uma língua para outra. A questão filosófica trata da diferença entre a cosmovisão dos autores bíblicos e a do leitor atual. Cosmovisão é visão do mundo, maneira de entender o universo e as relações entre seus elementos.
- A hermenêutica é necessária para que os ensinamentos bíblicos possam ser aplicados na atualidade. Para ser útil, o texto bíblico precisa ser lido, compreendido e aplicado.
Um exemplo bíblico da necessidade e importância da hermenêutica está em Atos 8.26-35. Filipe encontrou o eunuco etíope quando este lia o livro do profeta Isaías. O evangelista lhe fez então uma pergunta que se aplica a todos os leitores da bíblia: “Entendes o que lês”? Em seguida, Filipe começou a explicar-lhe o sentido do texto. O papel de Filipe é comparável ao ministério dos pastores, evangelistas e mestres que, hoje, interpretam as Escrituras e levam o ensinamento ao povo. Esta é uma missão de grande valor e maior responsabilidade.
O eunuco, importante oficial do governo da Etiópia, nada compreendia sobre as Escrituras. Da mesma forma, nos nossos dias muitos estão confusos ou totalmente ignorantes em relação ao conteúdo da palavra de Deus e, principalmente, a respeito do seu significado. Esta ignorância dá lugar aos seguintes erros:
- Invenção de versículos - Muitas pessoas mencionam ditados populares, ou até impopulares, e afirmam se tratar de versículos bíblicos. Por exemplo: “Faça a tua parte que eu te ajudarei”; “Não cai uma folha de uma árvore sem que seja da vontade de Deus”; “Uma alma vale mais que o mundo inteiro”, etc. Algumas frases desse tipo podem até conter uma idéia verdadeira, mas não estão escritas na bíblia.
- Distorção de versículos - Aprendemos muitos versículos por ouvi-los citados por outras pessoas ou através da letra de alguma música. Algumas vezes, os versículos sofrem ligeira alteração para se adequarem à melodia. Com isso, aprendemos um texto que não corresponde ao que a bíblia diz, e isso pode conduzir a entendimentos incorretos. Por exemplo, cita-se com freqüência o seguinte texto como se fosse passagem bíblica: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas as outras coisas vos serão acrescentadas”. Porém, o que Jesus disse foi: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas”. A troca de “estas” por “todas as outras” muda totalmente o sentido do texto. Muitos estão esperando que Deus lhes dê riqueza material, empresas, casas de luxo, carros importados, etc. Ele pode dar, mas Jesus não prometeu isso. O que ele estava dizendo é que Deus daria a comida, a bebida, e as vestes. “Estas” coisas são aquelas mencionadas nos versículos anteriores a Mateus 6.33.
- Isolamento de versículos – A facilidade de se guardar um pequeno versículo transforma-se em risco na medida em que passamos a “compreendê-lo” fora do seu contexto original. Sabemos muitos versículos sem, contudo, ter idéia a respeito do capítulo ou do livro onde o mesmo se encontra inserido. Por exemplo: a maioria dos crentes sabe de cor o texto de Filipenses 4.13: “Tudo posso naquele que me fortalece”. Normalmente, essa frase é usada como um tipo de afirmação do pensamento positivo, indicando que, com a ajuda de Deus, o crente vai vencer sempre, estando sempre por cima, sendo bem sucedido, ou seja, nada pode dar errado em seu caminho. O conhecimento do contexto, contudo, nos faz saber que essa frase foi escrita por Paulo quando este estava na prisão. Nos versículos anteriores, o apóstolo afirma que estava capacitado a passar por situações boas ou ruins, ter abundância ou fome porque, disse ele, “tudo posso naquele que me fortalece”. Isto não significa que todas as circunstâncias seriam positivas para Paulo, mas que, sendo positivas ou não, ele estava pronto para passar por elas e continuar firme em seu caminho com Deus.
- Interpretação livre – o desconhecimento das regras e princípios da hermenêutica faz com que muitos se aventurem de modo perigoso no terreno da interpretação bíblica. Assim, não compreendem de fato as Escrituras, mas inventam um sentido para o texto, de acordo com suas idéias e desejos. A hermenêutica nos permite uma interpretação parametrizada. Os princípios e regras procuram nos impedir de cair no precipício do erro teológico.
A idéia que muitas pessoas têm sobre o conteúdo bíblico e seu significado pode ser ilustrada por um amontoado de letras e números embaralhados, borrados e rabiscados. Os princípios da hermenêutica permitirão um processo de organização desses elementos na medida do possível. Vamos colocar cada coisa em seu lugar: lei, graça, Israel, igreja, passado, presente, futuro, Velho Testamento, Novo Testamento, letra, espírito, etc. É verdade que nosso entendimento não ficará 100% claro e organizado. Isto se deve às limitações humanas, incluindo limitações da hermenêutica, diante das grandezas espirituais, mas vamos obter um nível de organização bastante razoável, o que nos permitirá uma boa qualidade de interpretação bíblica e a possibilidade de evitarmos muitos erros absurdos.
OS RISCOS DAS INTERPRETAÇÕES EQUIVOCADAS
A falsa compreensão das Escrituras pode parecer algo inofensivo, mas sua grande ameaça é a produção de heresias, que são falsas doutrinas baseadas no erro de interpretação. Assim, muitos líderes exigem coisas absurdas e proíbem o que seria direito legítimo dos fiéis. Fazendo isso em nome de Deus, prejudicam gravemente aqueles que deveriam estar sendo conduzidos de modo sensato. Quantos líderes estão levando as pessoas a ofertarem tudo no altar, sob o argumento de que elas serão abençoadas com riqueza material? Quantos são proibidos de usarem roupas de determinada cor, proibidos de se casarem, proibidos de comerem este ou aquele alimento (I Tm.4.1-3). É verdade que as heresias não se limitam aos erros de interpretação bíblica, mas têm neles sua base principal.
Tais equívocos de compreensão bíblica produzem idéias erradas sobre Deus e expectativas infundadas em relação ao cristianismo, que vão gerar frustração, revolta e apostasia. O pior efeito possível desse processo é a perdição eterna.
As heresias são comparáveis a um alicerce de areia. Jesus disse que algumas pessoas haveriam de ouvir a sua palavra, mas, por não obedecerem, seriam comparáveis ao homem que edificou sua casa sobre a areia (Mt.7.26). Depois, por causa do vento, da chuva e dos rios, aquela casa caiu. Por quê essas pessoas não obedeceram a palavra? Podemos mencionar diversos motivos, mas, certamente, um deles é a falta de entendimento do verdadeiro sentido das palavras do Senhor. É o caso daquela semente que caiu à beira do caminho e foi levada pelas aves (Mt.13.19).
Muitas das religiões e denominações hoje existentes surgiram do falso entendimento das Escrituras, embora outras tenham surgido do esforço de se corrigirem erros do passado. As heresias têm duas fontes possíveis: o homem (Gálatas 5.19-20) e o Diabo (Gn.3.1; Mt.4.6). Precisamos compreender bem a bíblia porque, de outro modo, correremos o risco de cair no engano de Satanás ou ele simplesmente procurará se aproveitar do nosso próprio engano.
OS PRESSUPOSTOS NA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA
Quando vamos ao encontro das Sagradas Escrituras, levamos conosco uma série de pressupostos, ou seja, suposições prévias, preconceitos, expectativas e desejos. Já vamos “preparados” para encontrar algo que nem sempre está lá ou, se está, não se encontra em toda a parte nem na medida que gostaríamos.
Os pressupostos podem ser bons ou maus, importantes ou perigosos. Depende de quais são eles e de como conduzem nossa compreensão e aplicação das Escrituras. Exemplificando de modo prático: o policial que vai ao encontro do suspeito pressupõe que o mesmo se encontra armado. Tal pressuposto pode salvar a vida do policial, mas pode também levar à morte do suspeito. Depois do desfecho da situação, se constatará se o indivíduo possuía ou não uma arma. Será tarde demais para corrigir um erro cometido por causa de um pressuposto equivocado.
Os pressupostos são muito variados. Por exemplo, se uma turma de amigos vai viajar, a expectativa de cada um pode ser bastante diferente dos demais, dependendo dos desejos e interesses particulares.
Quem supervaloriza um tema, em detrimento de outros, tende a ver aquilo por toda parte. Por exemplo, algumas pessoas têm preferência e grande interesse pela escatologia. Terão, possivelmente, a tendência de fazer uma “leitura escatológica” de uma grande porção das Escrituras ou até da sua totalidade. Isto pode produzir erros quando a idéia escatológica não existe, de fato, em determinado texto. Quem tem preferência pelas questões relacionadas à cura poderá se sentir propenso a relacionar tudo com esse assunto. Outros temas que formam pressupostos atualmente são: prosperidade, batalha espiritual, demônios, bênção e maldição, dízimos e ofertas, boas obras, etc. Um exemplo digno de nota é o caso do escritor que afirmou que Jó perdeu tudo porque não era dizimista. Sua preferência pelo tema produziu uma conclusão infundada. O mesmo autor afirma que o dono dos porcos que foram destruídos pelos demônios sofreu aquele prejuízo por não ser dizimista. Há também quem use o versículo de I Cor.9.7, “Deus ama quem dá com alegria”, para se referir aos dízimos. Outro versículo usado com esse propósito é Lc.6.38. Contudo, ambos os versos não se referem aos dízimos, mas à ajuda ao próximo. Podemos extrair princípios que se aplicam a várias situações, mas não podemos afirmar que o escritor bíblico estivesse se referindo ao assunto que gostaríamos.
A linha denominacional do leitor determina muitos dos seus pressupostos. Assim, o pentecostal pode ter a tendência de ver tudo sob o prisma do poder, dos dons e do Espírito Santo. O “tradicional” deixará de ver muitos desses aspectos. As ênfases denominacionais podem criar uma espécie de “filtro” ou “lente” que poderá nos ajudar em determinadas passagens bíblicas e provocar interpretações erradas em outras. No sentido mais pejorativo, os pressupostos podem ser comparados a “trilhos”, “fôrmas” e “viseiras”. O que fazer? Precisamos identificar nossos pressupostos, preconceitos, expectativas, e julgar tudo isso sob a luz dos princípios hermenêuticos que, por sua natureza didática e impessoal, podem nos conduzir a uma leitura bíblica mais consistente e fiel ao conteúdo textual.
A religião do leitor ou sua linha teológica também produzirão muitos pressupostos. Nós, cristãos, fazemos uma leitura cristã do Velho Testamento, embora Jesus não seja ali mencionado literalmente. Evidentemente, temos razões suficientes no Novo Testamento para fazermos tal leitura do Velho. Os judeus, em geral, por não aceitarem o Novo Testamento, também não admitem uma leitura cristã do Antigo.
Outro exemplo é o caso dos teólogos da libertação. Julgando que a salvação seja um processo de libertação social e econômica, esses estudiosos lêem a bíblia com uma visão diferente daqueles que entendem a salvação como um livramento, sobretudo espiritual e eterno.
Católicos, espíritas e protestantes fazem leituras bíblicas diferentes. A idéia que temos sobre Deus também interfere nessa leitura. Nossa cosmovisão, teologia, soteriologia, etc, acabam formando um arcabouço teórico no qual procuramos encaixar o que lemos na bíblia. Já nos aproximamos das Escrituras com muitos preconceitos formados, quando deveríamos tomá-la “desarmados”.
Por exemplo, o texto de João 3.3, sobre o novo nascimento, é entendido pelos espíritas como uma referência à reencarnação. Parece que Nicodemos também teve um entendimento semelhante, mas foi imediatamente corrigido por Jesus, que lhe mostrou tratar-se de um nascimento espiritual.
Alguém disse o seguinte: “O sapo acha que o mundo é um brejo”. Por outro lado, “quem sempre viveu na terra seca pode duvidar que exista o mar”. Nossas experiências e preferências podem criar muitos condicionamentos que levamos para a leitura bíblica. Precisamos abrir nossa mente, com cuidado. Precisamos admitir que existem na bíblia outros assuntos além daqueles que preferimos. Precisamos deixar que os autores bíblicos falem, ao invés de colocarmos em suas palavras o significado que gostaríamos de encontrar nelas.
Não quero dizer com isso que todos os pressupostos estejam errados. Existem conceitos corretos e necessários que nos auxiliam na compreensão da Bíblia. Questões como inerrância, inspiração, literalidade, veracidade e historicidade das Escrituras, existência de Deus, divindade de Cristo, trindade, igreja, compreensão dos conceitos de lei e graça e suas relações, tudo isso, quando compreendido corretamente, será determinante para a interpretação bíblica. O fato de termos ou não algum tipo de compromisso com Deus também influenciará nosso entendimento da Bíblia. Podemos vê-la como uma carta de Deus para nós, ou como um documento estranho que fala sobre as relações de povos antigos com um Deus que não conhecemos.
PRESSUPOSTOS IMPORTANTES
Nessa “viagem” do conhecimento bíblico, algumas “bagagens” são necessárias. Alguns pressupostos são importantes e necessários, enquanto que outros podem ser prejudiciais.
O estudante da bíblia precisa decidir sobre as questões apresentadas a seguir. É preciso um posicionamento que pode ser definitivo ou provisório. Muitas vezes o fator determinante para tal definição será a fé. Este é o elemento que separará o cristão de todos os estudantes intelectuais das Escrituras, ainda que o verdadeiro crente também utilize suas faculdades racionais para compreender a Palavra de Deus. Contudo, a razão será um instrumento de auxílio, e não um fator determinante para a aceitação da bíblia.
Questões que vão influenciar a interpretação:
O que a bíblia é? livro de Deus para o homem, livro do homem sobre Deus, palavra de Deus, livro de história, livro de lendas, livro didático ou manual?
O que a bíblia contém? (não inverta; não negue; são aspectos importantes, embora secundários) história, geografia, ciência, sociologia, filosofia, poesia, antropologia, teologia, palavra de Deus, palavras do homem?
A posição evangélica é de que a bíblia é a palavra de Deus e contém história, geografia, ciência, sociologia, filosofia, poesia, etc. Não podemos negar esses elementos nem considerá-los como se algum deles fosse o conteúdo bíblico principal ou razão de sua existência. A bíblia existe para que a alma humana seja salva. Seu conteúdo inclui uma série de temas que emolduram a mensagem de salvação.
Como a bíblia é? Está em questão a inerrância e a inspiração. Entre aqueles que admitem que a bíblia seja um livro inspirado, existem supostas diferenças entre níveis de inspiração. Alguns acreditam que os escritores bíblicos estavam tão inspirados quanto um poeta ou um compositor qualquer. Outros acreditam na inspiração divina em cada letra ou palavra escrita. Nós cremos que os autores bíblicos foram inspirados, ou seja, orientados por Deus para escreverem as Sagradas Escrituras, mas tinham liberdade para usarem seu estilo pessoal e seu nível de conhecimento e cultura. Contudo, as porções proféticas são produzidas de modo mais direto por Deus. Os relatos históricos dependiam do conhecimento do escritor. Por exemplo, podemos citar os evangelhos. Por quê eles não são idênticos? Porque cada livro foi produzido de acordo com as informações que cada autor possuía. Entretanto, todos foram inspirados por Deus para escreverem. Paulo, ao escrever para Timóteo, mostrou sua própria posição em relação a este assunto, considerando toda a Escritura divinamente inspirada. Naquele momento, a Escritura disponível e reconhecida como palavra de Deus era o Velho Testamento (II Tm.3.16).
Quanto à inerrância, a Bíblia é perfeita para os fins aos quais se destina. Não devemos buscar ali exatidão literal em declarações secundárias sobre aspectos científicos. Por exemplo, dizer que “o sol parou” era suficiente para a compreensão dos leitores contemporâneos de Josué. Afinal, as Escrituras precisavam usar uma linguagem compreensível para a época. Hoje, muitos questionam a referida passagem dizendo que ali existe um erro, pois, na realidade, é a terra que se move em torno do sol. Entretanto, dizer que o sol “nasce” pela manhã, é uma expressão bíblica (Ec.1.3) que usamos até hoje, e isto não significa erro, senão uma figura de linguagem.
Na bíblia encontramos também arredondamentos numéricos. Tal prática é usada também nos dias atuais. Quando dizemos que a população mundial é de 6 bilhões de pessoas, estamos, obrigatoriamente, arredondando. Ninguém sabe quantas pessoas existem no planeta. Mesmo numa cidade grande, não se sabe quantas pessoas existem, mas a definição de um número, mesmo que aproximado, será útil para os planejamentos do governo. Assim, a bíblia apresenta muitos números aproximados, o que era perfeitamente satisfatório para os fins desejados. Um exemplo é a idade de Noé. Gênesis 5.32 diz que Noé viveu 500 anos e gerou Sem, Cão e Jafé. Temos aí um resumo e um arredondamento. Lendo o versículo, podemos imaginar que os três filhos de Noé eram gêmeos e nasceram quando o pai tinha 500 anos. Contudo, em Gênesis 10.21 somos informados de que Sem era mais velho que seus irmãos. Em Gênesis 11.10, vemos que Sem tinha 100 anos quando gerou Arfaxade, e isto ocorreu dois anos depois do dilúvio. Sabendo que o dilúvio ocorreu quando Noé tinha 600 anos (Gn.7.11), concluímos que quando Sem tinha 100 anos, Noé tinha 602. Logo, Sem nasceu quando Noé tinha 502 anos. Fica então demonstrado que em Gênesis 5.32 existe arredondamento numérico.
Ao extrairmos um versículo bíblico para aplicação, precisamos estar bem conscientes do seu contexto, autoria, etc. Por exemplo, o livro de Jó contém inúmeras declarações de seus amigos. No final, Deus diz que as palavras que eles disseram não eram retas (Jó 42.7). Portanto, ali existem palavras humanas, poéticas, muito bem elaboradas, porém erradas. As declarações daqueles homens estavam essencialmente incorretas ou só não eram adequadas para o caso de Jó? Precisamos compará-las ao contexto bíblico geral antes de extrairmos dali princípios norteadores para a nossa relação com Deus. Esta é uma questão muito delicada que merecerá estudos mais minuciosos.
O que fazer com o que a bíblia nos traz? ler, apreciar, obedecer literalmente, extrair princípios ou imitar os personagens?
Depois de decidirmos sobre o que a bíblia é e o que ela contém, precisamos decidir sobre o que faremos com o que a bíblia nos traz. Esta definição também será um poderoso pressuposto para nossa compreensão das Escrituras. Se pensamos que a bíblia deve ser sempre obedecida literalmente, corremos o risco de arrancar nossos olhos como Jesus mandou. Se a bíblia existe para que imitemos seus personagens, poderemos querer andar sobre as águas como Pedro, ou então produzir objetos sagrados, verdadeiros amuletos, para distribuição nos cultos. A definição dessa questão se dará no decorrer do nosso estudo. Em alguns momentos deveremos obedecer literalmente à bíblia. Em outros casos, precisaremos interpretar sua linguagem simbólica, não tentando fazer exatamente o que está escrito. Em grande parte de seu conteúdo, procuraremos extrair princípios espirituais que possam ser aplicados nos nossos dias, em uma cultura muito diferente daquelas em que viviam os escritores bíblicos.
Como a bíblia está organizada? Precisamos compreender o relacionamento de Deus com o homem no decorrer da história e decidir sobre: continuidade, descontinuidade, lei e graça, alianças, dispensações, revelação progressiva, plano de salvação (meio ou meios de salvação). Os que optam por uma continuidade prevalecente querem, geralmente, aplicar nos dias atuais a lei mosaica, pois compreendem que o plano de Deus é único em toda a bíblia e em toda a história. Alguns argumentam a favor de uma descontinuidade que rompe com o Velho Testamento, como se o mesmo não mais tivesse utilidade para nós. Talvez a melhor alternativa seja uma combinação entre ambos os conceitos. O plano de Deus para o relacionamento com os homens é único, mas a revelação é progressiva e as próprias atitudes humanas, especialmente de Israel, fazem com que haja algumas descontinuidades nesse processo.
Alguns dividem a história do relacionamento de Deus com os homens em dispensações, ou seja, períodos sucessivos onde as regras de um não se aplicam ao seguinte. Outros dividem a mesma história em alianças de Deus com o homem. Nesse modelo, porém, existe uma ênfase na continuidade, pois, cada aliança complementa e amplia a anterior, encampando seus objetivos e características. Para um aprofundamento nestas questões indicamos a leitura do livro “Hermenêutica Avançada”, de Henry A. Virkler (Editora Vida). Uma ilustração bastante proveitosa para se compreender a história do relacionamento de Deus com os homens é oferecida pela “teoria epigenética”: a revelação divina no decorrer da história é comparável ao crescimento de uma árvore oriunda de uma semente. A árvore é perfeita em todos os seus estágios, sendo uma plantinha ou atingindo a maturidade. Ela passa por momentos diferentes na medida em que vai crescendo rumo ao objetivo de frutificar. Assim, a relação de Deus com os homens desde o início do Velho Testamento até a era da igreja, passou por estágios diferentes, embora complementares e demonstrativos de um propósito único.
A bíblia pode ser compreendida?
Nessa questão, encontramos dois extremos perigosos:
1- Dizer que a bíblia não pode ser compreendida.
Muitas pessoas se detêm diante das dificuldades de interpretação bíblica. Os obstáculos são considerados como barreiras intransponíveis (distância cultural, histórica, idiomática, filosófica, etc). O grande risco é o abandono das Escrituras. A dificuldade muitas vezes é usada como desculpa para ocultar o desinteresse.
2- Dizer que tudo o que a bíblia diz pode ser entendido por todos.
Até mesmo os grandes eruditos precisam de humildade para reconhecer que não sabem tudo sobre a bíblia. Querer dar resposta para tudo poderá produzir interpretações erradas. Podemos compreender grande parte do que dizem as Escrituras, mas não tudo. Entretanto, esta limitação não deve desmotivar nosso estudo bíblico.
LIMITES DA HEMENÊUTICA
Evitando os extremos supracitados, precisamos conciliar possibilidade e limites. O alpinista, diante de uma montanha, não deve desistir nem ir além do que sua capacidade e seus instrumentos permitem.
A hermenêutica nos oferece um conjunto de princípios e regras para a interpretação bíblica. Porém, precisamos estar conscientes de que o texto bíblico está envolvido não apenas por questões técnicas, mas, sobretudo, por questões espirituais que não podem ser decifradas por regras humanas.
A realidade bíblica e espiritual está dividida em três partes: o que sabemos, o que podemos e o que não podemos saber.
O QUE SABEMOS
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O QUE PODEMOS SABER
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O QUE NÃO PODEMOS SABER
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Pequeno domínio do nosso conhecimento
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Grande domínio da nossa ignorância
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Infinito domínio da onisciência divina.
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As coisas reveladas que já conhecemos – Dt.29.29
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As coisas reveladas que podemos conhecer – Dt.29.29
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As coisas ocultas - Dt.29.29
Mistérios de Deus.
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A hermenêutica nos ajuda nesta área.
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O que está ao nosso alcance através da leitura, do estudo, da pesquisa.
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O que pode ser revelado por Deus, ou não.
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Não nos orgulhemos de tão pequeno conhecimento.
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Sejamos dedicados para alcançar o conhecimento que está disponível.
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Sejamos humildes para reconhecer que não sabemos o que está oculto por Deus.
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O conhecimento flui da coluna da direita para a coluna da esquerda, mas isso só acontece na medida em que Deus permite. A coluna da direita se refere ao pleno conhecimento que Deus tem de todas as coisas. A coluna do meio se refere a tudo aquilo que Deus colocou à nossa disposição através da Bíblia principalmente, e que podemos aprender, compreender. A coluna da esquerda indica o que já aprendemos até aqui.
Precisamos estar conscientes de que Deus não permitirá que saibamos tudo. Nunca seremos oniscientes. A bíblia menciona alguns mistérios. Podemos citar: o mistério da iniqüidade (II Tss.2.7), o mistério da fé (I Tm.3.9), o mistério da piedade (I Tm.3.16), o mistério de Cristo (Col.4.3). Alguns mistérios de Deus ficam ocultos por um tempo determinado. Na época certa, Deus os revela para as pessoas a quem ele quer. Daniel, um dos homens mais sábios do Velho Testamento, não compreendeu algumas de suas visões. Pediu ao Senhor a revelação, mas Deus não lhe concedeu. “Tu, porém, Daniel, cerra as palavras e sela o livro até o fim do tempo; muitos correrão de uma parte para outra, e a ciência se multiplicará... Eu, pois, ouvi, mas não entendi; por isso perguntei: Senhor meu, qual será o fim destas coisas? Ele respondeu: Vai-te, Daniel, porque estas palavras estão cerradas e seladas até o tempo do fim. Muitos se purificarão, e se embranquecerão, e serão acrisolados; mas os ímpios procederão impiamente; e nenhum deles entenderá; mas os sábios entenderão” (Daniel 12.4,8-10).
O mistério de Cristo esteve oculto durante todo o período do Velho Testamento, mas foi revelado no Novo (Ef. 3.4; Col.1.26-27). Outros mistérios, como aqueles que dizem respeito aos últimos dias, estão selados até que chegue a hora determinada pelo Pai. O livro de Apocalipse fala sobre a abertura dos selos. Isto representa o desvendamento de vários mistérios.
O que quero demonstrar é que a hermenêutica tem seus limites, mas isto serve apenas para nos alertar e não para nos desestimular em relação ao estudo. Precisamos apenas estar conscientes de que nem tudo pode ser desvendado pela hermenêutica. Por exemplo, a “trindade” é um mistério indecifrável para nós. Por mais que criemos figuras e exemplos, não temos como explicar o fato de Deus ser um só e ao mesmo tempo ser três pessoas.
A bíblia apresenta vários níveis de complexidade. Para o ímpio, por exemplo, ela pode parecer um livro sem sentido. “Os ímpios procederão impiamente; e nenhum deles entenderá; mas os sábios entenderão.” (Daniel 12.10). “Mas, se ainda o nosso evangelho está encoberto, é naqueles que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (II Cor.4.3-4). “Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado” (Mt.13.11).
Quando nos convertemos, a bíblia passa a fazer sentido. Porém, algumas porções das Escrituras dependem do conhecimento de outras, como um quebra-cabeças com múltiplas interdependências. Na medida em que vamos lendo e estudando, nossa compreensão vai crescendo. Entretanto, algumas passagens bíblicas vão depender da revelação divina ou do seu efetivo cumprimento para serem compreendidas. Vemos isso em relação ao Velho Testamento em suas passagens referentes ao Messias. Muito do que foi escrito não foi compreendido enquanto o Messias não veio. A revelação divina sobre as Escrituras é dada à igreja. Não se trata de uma experiência pessoal isolada ou exclusiva.
Os grandes doutores da lei em Israel, com todo o seu conhecimento técnico, achavam que o Messias estabeleceria um reino terreno em oposição a Roma e outros inimigos humanos. Portanto, precisamos ter uma vida de comunhão com Deus para que o nosso conhecimento técnico não nos afaste dos propósitos do Senhor. Lembremo-nos de Nicodemos. Jesus jogou por terra toda a sabedoria daquele homem ao falar do novo nascimento. “Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode ser isto? Respondeu-lhe Jesus: Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas?” (João 3.9-10).
A condição espiritual do leitor ou do estudante interfere na interpretação bíblica. Caso contrário, o ímpio poderia estudar hermenêutica e interpretar corretamente a bíblia. A parábola do semeador nos mostra que alguns ouvem a palavra, mas não entendem. Outros entendem, mas não obedecem (Mt.13.10-19; II Pd.3.15-16; II Cor.4.3-4).
“Falou Jesus, dizendo: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos” (Mt.11.25). A compreensão de algumas verdades espirituais dependerá de revelação (Mt.16.16-17). Porém, precisamos ter bastante cuidado nessa questão, pois muitos dizem que receberam revelação do Senhor. Toda revelação deverá estar coerente com o ensino geral das Escrituras e, mesmo não sendo produzida a priori pela Hermenêutica, deverá estar coerente com os princípios de interpretação bíblica.
Por exemplo, em Atos 2, quando Pedro citou os escritos de Davi e os relacionou à ressurreição de Cristo, ele interpretou de forma inédita aquela passagem bíblica do Velho Testamento. Os judeus nem esperavam que o Messias morresse, quanto menos que viesse a ressuscitar. O apóstolo compreendeu aquela Escritura por uma revelação do Espírito Santo. Ele não poderia depender da hermenêutica, embora também não estivesse contra ela.
A REVELAÇÃO PROGRESSIVA
Tudo o que hoje conhecemos a respeito de Deus foi mistério um dia. Nada havia que o homem pudesse fazer para conhecer o Senhor e as realidades espirituais. Portanto, Deus tomou a iniciativa de se fazer conhecer. Na medida em que a bíblia foi sendo escrita, a revelação estava sendo dada aos homens. Contudo, algumas porções das Escrituras continuavam sendo mistérios, embora registrados por escrito. No decorrer da história, Deus foi desvendando tais segredos, na medida em que isso se fazia oportuno e necessário. Por exemplo, Cristo estava oculto como um mistério nas páginas do Velho Testamento. No período da Nova Aliança, esse mistério foi revelado à igreja (Ef.3.1-10; II Cor.3.14-18. Rm.16.25-26). Daí em diante, se alguém ainda não compreendeu a obra do Senhor Jesus, é porque não se converteu ou tem sido negligente em relação às Escrituras (II Cor.4.3-4).
Algumas pessoas se gabam de terem recebido uma “revelação” sobre determinada passagem bíblica. Entretanto, tudo o que Deus quis revelar sobre a bíblia até agora, ele o fez à igreja como um todo. No momento em que indivíduo se converte, ele passa a ter acesso a toda essa revelação. Antes disso, a bíblia lhe parecia loucura. O que lhe resta a partir de então é a dedicação para alcançar a compreensão de tudo o que Deus já revelou (Dn.9.2). A revelação não estará acontecendo naquele momento, pois Deus já desvendou aquele mistério há muito tempo atrás. A revelação das Escrituras não é objeto de domínio particular.
Revelar significa “retirar o véu”. Quando Deus libera o conhecimento de determinado mistério, ele está removendo o que poderíamos chamar de “véu universal” que cobria aquela verdade espiritual. Por quê então todos não passam a compreender imediatamente aquilo que Deus revelou? Existem os “véus individuais”, conforme Paulo escreveu aos Coríntios a respeito dos judeus (II Cor.3.14-16). Deus já tinha removido o véu que ocultava a mensagem cristã presente no Velho Testamento. Contudo, os judeus ainda não haviam compreendido a revelação porque cada um tinha sobre si o véu da incredulidade. Quando alguém se converte, esse “véu particular” é removido, restando-lhe, então, dedicar-se à leitura e ao estudo para compreender tudo o que Deus colocou à sua disposição em termos de conhecimento espiritual.
A hermenêutica é ineficaz na investigação dos mistérios divinos, mas nos auxilia na compreensão daquilo que o Senhor já revelou.
O quadro a seguir ilustra o processo da revelação e compreensão das Escrituras.
Mistério
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Revelação universal (à igreja)
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Revelação individual
(na conversão)
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Compreensão (quando se dedica à leitura e ao estudo).
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Comparável à uma lâmpada apagada
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A lâmpada foi acesa
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O indivíduo tem os olhos abertos.
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O indivíduo olha para a luz.
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SENTIDOS POSSÍVEIS DE UM TEXTO
Muitas vezes o leitor questiona: “O que este texto significa para mim?” Contudo, a pergunta certa seria: “O que este texto significa para o autor e seus primeiros destinatários?” As regras da hermenêutica têm o objetivo de descobrir esse sentido original do texto.
Quantos significados têm determinada passagem bíblica? A dificuldade de interpretar é usada por algumas pessoas para inventarem significados para o texto. Um texto tem, geralmente, um só significado. Algumas passagens indicam mais de uma linha de interpretação, mas creio que estes casos são excepcionais. Por exemplo, o texto de Ezequiel 28 se refere ao rei de Tiro e, ao mesmo tempo, a Satanás. O Salmo 22 fala da experiência do salmista e, ao mesmo tempo, fala sobre Jesus. Isaías 49 fala do próprio autor, fala de Israel e do Messias, referindo-se a todos eles como “o servo do Senhor”. Além disso, alguns textos podem ter um significado que não era do conhecimento do escritor. Já mencionamos o fato de que Daniel escreveu algumas coisas que ele mesmo não compreendeu. Deus mandava os profetas falarem e escreverem, mas isso não significa que eles tivessem plena consciência de toda a extensão do cumprimento de suas palavras.
A BÍBLIA – 1 LIVRO EM 2 DIMENSÕES
O texto bíblico tem dois autores: o humano e o divino (ou, se preferirmos, um autor divino e escritores humanos). Portanto, pode, em algumas passagens, ter dois significados distintos, porém coerentes. São duas áreas de significado e cumprimento.
HUMANO
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DIVINO
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Letra
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Espírito (Rm.2.29; 7.6; II Cor.3.6-7. II Tm.3.15; I Cor.9.9)
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Compreensão natural
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Compreensão espiritual; revelação. (Ef.1.16-18; Col.1.9-10)
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Recursos e ponto de vista humanos
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Propósitos divinos (ex. registros de erros e pecados). (II Pd.1.20-21; Rm.15.4)
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Significado humano (salmo 22.1)
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Significado divino (salmo 22.1)
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Narrativa natural
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Lição espiritual ou princípios espirituais (possível aplicação) Mt.23.23; II Cor.3.13-15
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Imanência da palavra (o que é imediato) (sentido restrito, limitado)
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Transcendência (sentido amplo e cumprimento pleno) (futuro)
(Por isso a bíblia não perde a validade).
(Por isso a bíblia nos diz respeito).
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No quadro anterior, a coluna da esquerda indica os aspectos humanos presentes na bíblia. Embora seja a palavra de Deus, ela foi produzida de acordo com a capacidade de cada escritor. Sua mensagem é divina, mas sua forma é marcada pela personalidade humana. Por exemplo, cada evangelho foi escrito de acordo com o ponto de vista do autor humano. Se fosse pelo ponto de vista divino, até hoje ainda estariam sendo escritos. A consciência sobre esses dois lados é importante para não exigirmos da bíblia mais do que cada autor podia transmitir. Não encontraremos todos os detalhes que a nossa curiosidade procura, nem acharemos na bíblia uma linguagem científica. Quando Josué diz que “o sol parou”, isso indica o ponto de vista humano sobre a ação de Deus. Se o livro fosse escrito sob o ponto de vista divino, teríamos ali um tratado de astronomia.
TRANSCENDÊNCIA – As Escrituras possuem um sentido que vai além da letra. Porém, devemos ter cuidado para não irmos longe demais por nossa própria conta. Cuidado com o desejo de encontrar “algo mais” em cada versículo bíblico. Sempre compare sua interpretação com a de outras pessoas, principalmente os mais instruídos. Ouça e examine as críticas. Sua interpretação precisa estar coerente com a mensagem geral da bíblia e com o que ela nos mostra sobre o caráter de Deus.
A LETRA E O ESPÍRITO
Paulo disse que “a letra mata, mas o espírito vivifica” (II Cor.3.6). Há quem use tal texto para negar o sentido literal das Escrituras. Este sentido não deve ser negado nem menosprezado, pois ele é a base do sentido espiritual. Por exemplo, se negarmos a existência real de Adão e Eva, cairá por terra toda a doutrina bíblica do pecado e suas implicações espirituais.
Por outro lado, não devemos usar a letra contra o Espírito. Isto acontece quando, por exemplo, usamos a letra como um limite para nossa ação a favor do próximo. Nesse caso, a letra mata. Alguém poderia dizer: “Já entreguei meu dízimo, portanto não preciso ajudar ao meu irmão necessitado”. Estaria assim, apegando-se ao sentido literal do dízimo e negando-se a cumprir o amor para com o próximo.
A letra abrange um sentido limitado. O espírito vai além. Em Mateus 5, Jesus mostrou isso. “Ouviste o que foi dito aos antigos..” (a letra). “Eu porém vos digo..” (o espírito). O Novo Testamento veio mostrar o conteúdo espiritual que havia por trás da lei e que era ignorado por grande parte do povo de Israel. Ao repreender os fariseus, Jesus chamou a atenção daqueles líderes para a justiça, a misericórdia e a fé, que representavam o sentido espiritual da lei. Os fariseus estavam apegados apenas à letra.
SIGNIFICADO, CUMPRIMENTO, OBEDIÊNCIA E APLICAÇÃO DE PRINCÍPIOS
Um texto bíblico terá um significado, às vezes dois ou mais. As profecias poderão ter mais de um cumprimento. As promessas, da mesma forma. Além disso, podemos extrair princípios espirituais, lições, dos textos bíblicos que poderão ser aplicados em inúmeras situações.
Tomemos, por exemplo, a bênção de Jacó sobre seus filhos. A primeira preocupação do leitor é saber o significado do texto. As figuras ali utilizadas, poderão ser melhor compreendidas se estudarmos no próprio livro de Gênesis a história dos filhos de Jacó. O verso 5 diz: “Simeão e Levi são irmãos; as suas espadas são instrumentos de violência”. Para saber o significado desse texto, é preciso ler o capítulo 34, onde está o relato da chacina realizada pelos dois irmãos. Em seguida, em Gn.49, consta uma maldição contra eles e sua descendência. Portanto, aquela profecia se cumpriria na história das tribos de Simeão e Levi. Resolvidas as questões de significado e cumprimento, podemos pensar nos princípios que podemos extrair do texto. Aprendemos sobre o risco da união para a prática do pecado, sobre a colheita daquilo que plantamos, sobre o poder que os pais têm para abençoar ou amaldiçoar seus filhos, etc. Os princípios são conceitos ou “leis” espirituais que podem ser aplicados em qualquer tempo e lugar, apesar das mudanças culturais.
Em outro ponto do capítulo 49, Jacó disse:
“Judá, a ti te louvarão teus irmãos; a tua mão será sobre o pescoço de teus inimigos: diante de ti se prostrarão os filhos de teu pai. Judá é um leãozinho. Subiste da presa, meu filho. Ele se encurva e se deita como um leão, e como uma leoa; quem o despertará? O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de autoridade dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence; e a ele obedecerão os povos. Atando ele o seu jumentinho à vide, e o filho da sua jumenta à videira seleta, lava as suas roupas em vinho e a sua vestidura em sangue de uvas. Os olhos serão escurecidos pelo vinho, e os dentes brancos de leite”.
Esses versículos têm duplo sentido e muitos cumprimentos. Em primeiro lugar, o texto se refere a Judá, filho de Jacó. Em segundo lugar, o texto se aplica à tribo de Judá e seus descendentes, prevendo o estabelecimento da monarquia em Israel e a ocupação do trono pelos descendentes de Judá. Em último lugar, essa passagem é uma profecia sobre Jesus, relacionando-se até ao fato de sua entrada em Jerusalém, montado em um jumento, sua morte e o seu reino. Essa profecia mencionou fatos que influenciariam toda a história futura até o Apocalipse, onde novamente o “Leão da Tribo de Judá” é mencionado.
Outro exemplo: as palavras de Deus para Abraão, em Gênesis 12, cumpriram-se na vida daquele patriarca e também na vida de Isaque, Jacó, e continuam se cumprindo até hoje no povo de Israel, alcançando também a igreja por meio de Jesus Cristo. Promessas de bênção ou maldição podem ter inúmeros cumprimentos. Funcionam como um “dispositivo automático” que é ativado sempre que determinadas condições se satisfazem.
APLICAÇÃO – OBJETIVO FINAL DA INTERPRETAÇÃO
Mesmo que um texto não tenha vários sentidos, ele pode ser aplicado de várias formas, desde que não venha a induzir ao erro ou a um sentido contraditório ou a um ensinamento anti-bíblico. Aplicação é a utilização do texto na nossa realidade. Portanto, tomando o texto sobre Simeão e Levi, podemos relacioná-lo a diversas situações da nossa vida, sem com isso alterar o significado do texto. Extrairemos dali os princípios espirituais que o texto contém e os aplicaremos à nossa realidade.
Outro exemplo: Podemos ler sobre o fato de Pedro ter negado Jesus três vezes. Daí extraímos vários princípios:
1 – o risco que todos corremos de cair em pecado, por mais fortes e experientes que possamos ser ou parecer.
2 – a necessidade do compromisso com Jesus e fidelidade em qualquer situação.
3 – as dificuldades para que se mantenha um testemunho íntegro.
4 – Jesus nos conhece profundamente e até nossos futuros erros.
5 – A humildade necessária para reconhecer o erro e voltar ao caminho certo.
6 – Jesus nos ama a ponto de nos perdoar por tê-lo negado.
7 – Mesmo alguém que negou o Senhor pode ser restaurado e poderosamente usado por Deus.
Os princípios nos mostram padrões da ação humana, divina ou até mesmo demoníaca. Os homens de hoje têm a mesma natureza que Pedro ou outro personagem bíblico. Depois de entender a história de Pedro, podemos fazer analogias, comparações com situações atuais em que alguém possa ser tentado a negar a Cristo. Assim, estaremos aplicando os princípios, as lições do texto, à nossa realidade.
OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE DA INTERPRETAÇÃO
A interpretação bíblica que tem sido praticada no decorrer dos séculos pode ser dividida em dois tipos ou aspectos (embora possamos classificá-la de várias outras maneiras). Refiro-me à objetividade e subjetividade da interpretação. Aquilo que é objetivo está ligado ao objeto em estudo (a bíblia). O que é subjetivo está mais ligado ao sujeito, ao intérprete. Precisamos compreender essa distinção para podermos julgar nossas próprias interpretações, estando aptos a perceber o caráter firme ou volátil de nossas afirmações a respeito das Escrituras.
Por exemplo, um estudo objetivo de Gênesis 22 seria a identificação dos personagens (Abraão e Isaque), do local (monte Moriá), o conhecimento do episódio que envolve o pedido de Deus para que o patriarca sacrificasse seu filho, e a intervenção divina para impedir a consumação daquele ato. Daí extraímos lições objetivas a respeito da fé e da obediência de Abraão, da humildade e obediência de Isaque e do caráter provedor de Deus. Estes são elementos presentes no texto. Uma análise subjetiva seria vermos em Abraão a figura de Deus Pai, em Isaque um tipo de Cristo e naquela cena sacrificial um protótipo da crucificação. Isto é subjetivo porque não se trata de afirmação bíblica, mas apenas uma alegorização por parte do intérprete. Tal entendimento pode estar correto, mas não pode ser comprovado como algo que pudesse estar presente na intenção do autor bíblico. Não podemos apresentar tal alegoria como sendo o significado do texto, mas podemos utilizá-la deixando claro para os nossos ouvintes que se trata de uma analogia, uma comparação, entre duas realidades bíblicas distintas e independentes.
OBJETIVIDADE
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SUBJETIVIDADE
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Fatos, dados concretos
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Interpretações, opiniões
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O que pode ser provado biblicamente
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O que não pode ser provado
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Tem aceitação ampla
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Tem aceitação restrita
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Conclusão
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Suposição
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Está correto
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Pode estar certo ou errado
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Significado literal
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Significado simbólico, espiritual. Analogia, alegoria e aplicação.
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Questão de fé e conhecimento
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Questão de fé (certa ou errada)
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Profecias e promessas
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Identificação do cumprimento (quando e como)
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Oferece segurança
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Exige muito cuidado.
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Argumentos fortes
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Argumentos fracos
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Exemplo objetivo: Compreensão do Salmo 22 comprovada por Mateus 27.46
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Exemplo subjetivo: Afirmar que Cristo e a igreja estão retratados
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Por exemplo, a compreensão literal das palavras do Apocalipse é algo bastante objetivo, pois toma por base o contexto da época e o sentido léxico-gramatical das palavras. Por outro lado, querer ligar certa passagem daquele livro a um episódio histórico, identificando-o como cumprimento da profecia, já é algo subjetivo. Vemos, portanto, que é uma atitude passível de erro. Contudo, podem ocorrer também acertos nesse tipo de identificação. O estudante sério da Bíblia deve estar ciente disso. Poderá até se aventurar na subjetividade, mas tomará o cuidado próprio de quem anda em um campo minado.
Um estudo objetivo das sete cartas do Apocalipse envolveria informações sobre as cidades e as situações ali mencionadas. Seria, porém, subjetivo dizer que cada carta se refere a um período da história da igreja desde Atos até o fim dos tempos. Isto não pode ser comprovado. Mais subjetiva ainda é a afirmação do pregador ao dizer que a “Jezabel” mencionada em Ap.2 seja um demônio. Além de improvável, tal afirmação nos parece absurda. Existem, portanto, graus de objetividade e subjetividade que se encontram em determinado ponto e se distanciam em outros.
Ao interpretarmos determinada passagem bíblica, precisamos verificar se estamos caminhando na direção objetiva ou subjetiva. A hermenêutica trabalha com o lado objetivo da interpretação. De fato, muitos eruditos da área não admitem sequer a validade de se examinar alguma interpretação subjetiva. Nós admitimos tal possibilidade, desde que amparada na objetividade. Existem interpretações que, embora sejam subjetivas, são plausíveis e se baseiam no ensino geral das Escrituras. Existem outras que não possuem qualquer fundamento, sendo até mesmo absurdas.
A hermenêutica se restringe às questões objetivas, pois, enquanto ciência, precisa de provas e busca conclusões seguras. O lado subjetivo não é regido por regras e, portanto, não pode ser objeto da hermenêutica propriamente dita.
Não podemos ficar presos à objetividade nem abandoná-la. Ficando presos, entenderemos apenas a letra e não a essência bíblica. Teríamos, por exemplo, dificuldade para ver Cristo no Velho Testamento, a não ser nas passagens citadas pelo Novo. Por outro lado, se abandonarmos a objetividade, poderemos inventar heresias.
Para os contemporâneos de Jesus e dos autores do Novo Testamento, a interpretação ou uso que eles fizeram do Velho pareceria algo totalmente subjetivo. No entanto, estavam corretos, como é óbvio concluir. Por exemplo: João 3.14; Mt.12.40; II Cor.9.9-10.
Os “pais da igreja” fizeram uma leitura cristã subjetiva do Velho Testamento, afirmando que somente assim ele poderia ser considerado um documento útil aos cristãos. É verdade que cometeram alguns excessos em suas alegorizações, mas algumas das suas interpretações ainda são preservadas em nosso meio como herança. Por exemplo, o ensino sobre Cristo e a igreja com base em Cantares.
Se quisermos nos prender aos aspectos objetivos da interpretação, não teremos como ver Cristo em Gênesis 3.15 ou na figura de Isaque ou José do Egito. Contudo, por mais subjetivo que possa ser este entendimento, ele está arraigado nas doutrinas cristãs mais ortodoxas.
A interpretação subjetiva pode parecer um universo livre a ser percorrido de acordo com a idéia de cada um. Porém, não é assim. Nossas interpretações, por mais subjetivas que sejam, precisam estar coerentes com o ensino geral da bíblia. Se não houver essa base, além de subjetivo, nosso ensinamento será falso.
HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA
Estudando a história da hermenêutica conheceremos vários métodos de interpretação bíblica que se sucederam. Podemos assim compará-los, buscando, quando possível, o aproveitamento de suas melhores características. Sobretudo, tal abordagem será útil para que não repitamos os mesmos erros dos intérpretes do passado. Estaremos também um pouco mais aptos para a avaliação de outros métodos que porventura surgirem. Na seqüência, apresento resumo do relato histórico apresentado por Henry A. Virkler em sua obra “Hermenêutica Avançada”.
1- Exegese judaica antiga (536 a .C ate séc. 1 d.C)
Esdras (Nee.8.8). O povo que voltava do cativeiro falava aramaico e estava bem distante da realidade de Moisés. Esdras certamente traduzia e explicava a lei. Ele parece ter sido a primeira figura de destaque na Hermenêutica judaica.
Rabinos posteriores: Depois de Esdras, os rabinos primaram pela supervalorização da letra. As cópias eram feitas com extremo zelo e reverência. Detalhes de estilo literário, como as figuras de linguagem e paralelismo, ou incidentais, como a repetição de palavras, ocorrência de sinônimos, repetição de letras ou a forma das mesmas, eram considerados como motivos para interpretações engenhosas. Esse comportamento recebe o nome de “letrismo” e muitas vezes substituiu o sentido que o autor bíblico pretendia.
Rabinos no tempo de Cristo: praticavam a interpretação literal (peshat), midráshica, pesher e alegórica. O tipo de interpretação variava de acordo com o grupo judaico e com o propósito.
Literal – é o sentido normal do texto, com base em suas palavras. Esse tipo de interpretação era adequado para os interesses judiciais e práticos.
Midráshica - Midrash era um tipo de comentário da lei – obras desse tipo surgiram a partir do século 4 a .C. – Os adeptos desse método determinavam o significado do texto pelo significado das palavras, sem consideração do contexto e da idéia do autor. Comparavam palavras e frases de textos diferentes e autores diferentes, sem levar em conta se o assunto era o mesmo. Teciam interpretações com base em questões gramaticais (tempo verbal, etc). Somavam os valores numéricos de uma palavra e faziam sua substituição por outra palavra do mesmo valor, mudando assim o sentido do texto, ou tirando conclusões totalmente independentes do mesmo. Por exemplo, o nome “Eliezer” possui valor numérico igual a 318. Relacionando-se isso ao fato de que Abraão formou um exército de 318 homens, um intérprete concluiu que o servo Eliezer valia por 318 homens ou tinha o valor de um exército. A interpretação midráshica, que desconhecia qualquer regra, conduzia, quase sempre a fantasias absurdas.
Pesher – esse método, praticado pelos essênios, era semelhante à interpretação midráshica, mas possuía ênfase escatológica. Os essênios esperavam o fim do mundo para os seus dias. Por isso, liam as Escrituras procurando em toda parte mensagens para os últimos dias.
Alegórica – Alegorizar significa dar um sentido místico ou espiritual para um relato histórico. Por exemplo, se tomarmos a história de Adão e Eva e falarmos sobre Jesus e a igreja, estaremos alegorizando. Fílon de Alexandria dizia que a interpretação literal, por sua facilidade, era própria dos imaturos. Haveria, portanto, um sentido alegórico oculto em cada história bíblica. A alegoria é um recurso válido, mas deve ser usado com cautela. O uso da alegoria não nos deve fazer negar, esquecer ou menosprezar o sentido literal de uma passagem bíblica. Por exemplo, Paulo alegoriza a história de Sara e Agar, mas não nega seu sentido histórico. É bom deixar claro que existem algumas passagens bíblicas que contém alegoria. É o caso do texto de Paulo em Gálatas 4.24-31. Outra coisa é a nossa iniciativa de alegorizar as passagens bíblicas, quando, de fato, trata-se de texto histórico ou de outro tipo.
Os judeus antigos costumavam alegorizar uma passagem bíblica nas seguintes situações:
- Se o significado literal fosse indigno de Deus.
- Se a declaração fosse contrária a outra declaração bíblica.
- Se o texto afirmasse tratar de alegoria.
- Se houvesse expressões dúplices ou palavras supérfluas.
- Se houvesse repetição de algo já conhecido.
- Se uma expressão fosse variada.
- Se houvesse emprego de sinônimos.
- Se fosse possível jogo de palavras.
- Se houvesse algo anormal em numero ou tempo verbal.
- Se houvesse presença de símbolos
2- Uso do Antigo Testamento pelo Novo Testamento
10% do conteúdo do Novo Testamento compõe-se de citações do Velho, incluindo menção a 30 de seus livros. Jesus e os autores do Novo Testamento citam o Velho Testamento quase sempre o interpretando de modo literal.
Mateus destaca o cumprimento do VT em seus dias.
Jesus citou personagens do VT como pessoas reais, afirmando, inclusive o retorno das mesmas para o juízo final. Além disso, o Mestre criticou o uso das tradições na interpretação das Escrituras que acabavam por inutilizá-la (Mt.15.1-9).
Os apóstolos – Pedro destaca em Atos 2 o cumprimento de Joel 2.
Paulo e Pedro declararam a inspiração divina do VT (II Tm.3.16 / II Pd.1.21).
Paulo usou alegoria em Gálatas. Se ele usou, nos podermos usar com cuidado e conhecimento de causa, sem negar o sentido histórico do texto.
3- Exegese Patrística (100 a 600 d.C.)
Os pais da igreja interpretaram o Velho Testamento principalmente de modo alegórico. Com isso, foram muito longe da intenção dos autores. Não havia regras para a interpretação.
Clemente de Alexandria - (150 a 215 d.C.) – Dizia que o verdadeiro significado das Escrituras está oculto para que sejamos inquiridores. Afirmava a existência de cinco sentidos ou camadas no texto bíblico: histórico, doutrinal, profético, filosófico e místico.
Orígenes – (185 a 254) – Valorizava I Cor.2.6-7 e considerava as Escrituras como uma vasta alegoria na qual cada detalhe era simbólico. Dizia que, assim como o homem tem três partes, as Escrituras têm três sentidos: literal, moral e alegórico (místico). Na prática, ele desprezou o sentido literal.
Agostinho – (354 a 430) – Estabeleceu regras avançadas para a época. Algumas são usadas até hoje. Defendeu a existência de quatro sentidos: histórico, etiológico (ref.origem), analógico e alegórico. Na prática, Agostinho usou alegorização excessiva, justificando-se com II Cor.3.6. Suas regras são:
o O intérprete precisa possuir fé cristã.
o Deve-se considerar o sentido literal e histórico das Escrituras.
o A Escritura tem mais que um significado. Portanto, o método alegórico é adequado.
o Há significado nos números bíblicos.
o O Antigo Testamento é um documento cristão porque Cristo está retratado nele.
o Compete ao expositor entender o que o autor pretendia dizer e não introduzir outro significado.
o O intérprete deve consultar o verdadeiro credo ortodoxo.
o Um versículo deve ser estudado dentro do seu contexto e não isolado.
o Se um texto é obscuro não pode ser usado como matéria de fé (doutrina).
o O Espírito Santo não toma o lugar do aprendizado necessário para se entender as Escrituras.
o A passagem obscura deve dar preferência à passagem clara.
o O expositor deve levar em consideração que a revelação é progressiva.
A Escola de Antioquia da Síria – Teve como destaque Teodoro de Mopsuéstia (350-428) – rejeitaram o letrismo e o alegorismo da Escola de Alexandria. Valorizaram a interpretação histórico-gramatical. Rejeitaram o uso da autoridade sobre a interpretação.
A Escola de Alexandria – Ensinava a existência de um significado espiritual acima dos fatos históricos. Embora o princípio tivesse algo válido, aqueles intérpretes se entregaram a fantasias sem limites. Os intérpretes de Antioquia admitiam a existência de um significado espiritual implícito no próprio acontecimento (princípios detectáveis no texto), sem a necessidade de suposições externas.
4- Exegese Medieval (600 a 1500)
Foi uma época de ignorância e domínio católico. Os dogmas e a tradição regulamentavam a interpretação bíblica. Durante esse período a interpretação foi dominada pela alegorização e pelo “sentido quádruplo” sugerido por Agostinho, expresso pelos itens a seguir:
1- A letra mostra-nos o que Deus e nossos pais fizeram. (Por exemplo, nesse sentido, Jerusalém seria a própria cidade histórica em Israel).
2- A alegoria mostra-nos onde está oculta a nossa fé. (Jerusalém representaria, portanto, a igreja).
3- O significado moral dá-nos as regras da vida diária. (Jerusalém significaria a alma humana).
4- A anagogia (escatologia) mostra-nos onde terminamos nossa luta. (As referências a Jerusalém indicariam então a Nova Jerusalém de Apocalipse).
É preciso verificar se o texto bíblico contém indicadores destes sentidos.
O “letrismo” também continuava e alcançava níveis ridículos. Até anagramas eram construídos a partir de palavras bíblicas, atribuindo-se a cada letra uma relação a outra frase ou palavra que não estava contida no texto original.
Em meio a essa confusão exegética, alguns judeus espanhóis (séculos12 a 15) defendiam o uso do método histórico-gramatical.
Alguns católicos franceses, da Abadia de São Vitor, propunham preferência ao sentido literal e que a exegese desse origem à doutrina e não o contrário.
Nicolau de Lira (1270 a 1340) defendeu a utilização do “sentido quádruplo”, mas entendia que o literal seria a base dos demais. Lutero foi influenciado por suas idéias.
5 – Exegese da Reforma (século XVI)
Observou-se o abandono gradual do “sentido quádruplo”.
Lutero (1483 a 1546) defendeu a tese de que a fé e a iluminação do Espírito Santo são fundamentais para a correta interpretação da bíblia.
Afirmava que as Escrituras estão acima da igreja. A interpretação correta procede de uma compreensão literal. Devem ser consideradas as condições históricas, a gramática e o contexto. As Escrituras são claras e não obscuras como dizia a Igreja Romana. O Velho Testamento aponta para Cristo. É fundamental a distinção entre Lei e Graça, embora ambos estejam presentes em toda a bíblia.
Calvino (1509 – 1564) – Dizia que a alegorização era artimanha de Satanás. Segundo Calvino, a Escritura interpreta a Escritura. Destacou a importância do contexto, gramática, palavras e passagens paralelas, em lugar de trazer para o texto o significado do intérprete.
6- Exegese Pós-reforma (1550-1800)
Confessionalismo – Nessa época foram definidos os credos católicos e protestantes como base da exegese. A variedade de credos e a preferência do intérprete conduzia a muitas discrepâncias teológicas. O uso das Escrituras ficou restrito à escolha de textos para “comprovação” de posições religiosas pré-determinadas.
Pietismo – Philipp Jakob Spener (1635-1705) – O pietismo foi um movimento contra a exegese dogmática. Incentivou o retorno às boas obras, ao conhecimento bíblico, ao preparo espiritual dos ministros e o trabalho missionário. Por algum tempo, houve boa utilização do método histórico-gramatical. Depois, a tendência de espiritualizar de forma piedosa os textos, fortaleceu a tese de uma “luz interior” para a interpretação e o desprezo ao método histórico-gramatical, distanciando os intérpretes das intenções do autor.
Racionalismo – A razão em confronto com a revelação - A razão passou a ser considerada como única autoridade na interpretação bíblica. Só se aceitava o que se podia compreender. Após a Reforma, o empirismo aliou-se ao racionalismo. Empirismo significa que o conhecimento vem apenas por meio dos sentidos físicos. Só se podia aceitar o que se pudesse comprovar.
Lutero disse anteriormente que a razão deve ser um instrumento para a compreensão da Palavra (uso ministerial) e não um juiz (uso magisterial).
Entendemos que o uso da razão na compreensão das Escrituras é proveitoso, mas precisa estar sujeito à fé. Os milagres não podem ser compreendidos pela razão. Nosso culto é racional (Rm.12.1-2), mas a razão não é a sua base de sustentação.
7- Hemenêutica Moderna. (após 1800)
Nos últimos séculos, o método histórico-gramatical tem sido o mais aceito, embora ainda ocorram interpretações por algumas das formas praticadas durante a história.
REGRAS DA HERMENÊUTICA GERAL
As regras da “Hermenêutica geral” são procedimentos de interpretação que podem ser aplicados a qualquer passagem bíblica em estudo.
MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL
Já enfatizamos que, durante o processo de interpretação bíblica, não importa o sentido que nos agrada ou o que gostaríamos de encontrar no texto, mas precisamos descobrir o sentido pretendido pelo autor. Para isso, o processo de interpretação envolverá a busca de informações históricas, textuais, gramaticais e teológicas.
1- ANÁLISE HISTÓRICO-CULTURAL
Para entendermos alusões, referências, que o autor faz, precisamos conhecer o contexto histórico que envolve a obra. Desse modo, o propósito do autor ficará mais claro para o nós.
Por exemplo, em João 4 está escrito que os judeus não tinham bom relacionamento com os samaritanos. Contudo, o autor não explica os motivos da desavença. Faz apenas uma rápida alusão ao assunto. Se quisermos compreender a questão, precisaremos estudar a história de Israel, que está no Velho Testamento. Isto nos ajudará a compreender de modo mais amplo a passagem de João 4. O encontro de Jesus com a mulher samaritana passa a ser visto de outra forma quando se tem o conhecimento histórico. Detalhes daquele diálogo tornam-se também mais significativos.
Ao estudarmos uma passagem bíblica, será excelente se pudermos descobrir:
- Quem é o autor.
- Quem são os destinatários
- Quem são os personagens.
- Localização (do autor e destinatários ou personagens).
- Seu tempo (quando foi escrito o livro ou quando ocorreram os fatos nele descritos).
- Sua história.
- Seus costumes (cultura).
- Circunstâncias imediatas (que podem ser problemas ou necessidades que motivaram a produção do livro e estão ligados ao tema ou propósitos do mesmo)
Faz muita diferença quando lemos um livro sabendo quem foi o autor e quem são os destinatários, etc. Fará mais diferença ainda se soubermos a história dessas pessoas, sua cultura e as circunstâncias do momento em que o livro foi escrito. Se não soubermos essas coisas, a mensagem do livro e seu propósito poderão ficar bastante obscuros para nós. A interpretação pode ficar comprometida. É verdade que nem sempre conseguiremos esses dados. Por exemplo, não sabemos quem foi o autor da carta aos Hebreus. Contudo, existem muitas informações disponíveis para que o nosso estudo bíblico seja bastante proveitoso.
Onde podemos conseguir informações históricas? Nossa fonte principal é a própria bíblia.
Por exemplo, aos lermos os Salmos, eles terão mais sentido para nós se conhecermos os livros dos Reis, Crônicas e Samuel, visto que a maioria dos Salmos foram escritos por Davi em circunstâncias relatadas em outros livros. Além disso, se conhecermos bem o Velho Testamento, teremos mais facilidade na compreensão de muitas passagens do Novo.
É importante também a busca de dados históricos em livros extra-bíblicos. Eles nos fornecerão muitas informações adicionais que não se encontram nas Escrituras. Quanto ao período do Novo Testamento, existe muito material nos livros de História Geral. Quanto ao Velho Testamento, não existe muito material de primeira mão, principalmente em português. Entre as poucas obras disponíveis estão os livros de Flávio Josefo, um historiador judeu que viveu no primeiro século depois de Cristo e recontou a história do Velho Testamento, incluindo informações que não estão na bíblia. De qualquer modo, podemos recorrer a muitos outros livros que, mesmo não sendo tão antigos, são úteis porque resultam de grandes trabalhos de pesquisa. Entre eles estão os dicionários bíblicos e as enciclopédias bíblicas.
2- ANÁLISE CONTEXTUAL
Quando pensamos haver encontrado o sentido de um texto ou palavra, precisamos verificar a coerência da nossa conclusão:
- Dentro da frase.
- Dentro do versículo.
- Dentro do capítulo.
- Dentro do livro (de acordo com o tema e propósito).
- Dentro da obra do autor.
- Dentro da bíblia.
Por exemplo, em Filipenses 4.13 está escrito: “Tudo posso naquele que me fortalece”.
“Tudo posso” pode ser entendido como “posso fazer qualquer coisa”, “posso fazer o que eu quiser”, “tudo é permitido”. Seria correta essa interpretação?
Precisamos verificar a coerência disso usando a frase completa: “Tudo posso naquele que me fortalece.” Precisamos descobrir quem é o autor da frase. Sabendo que é o apóstolo Paulo, já eliminamos qualquer sentido “permissivo” que pudéssemos ver no texto. O conhecido caráter do autor interfere diretamente na interpretação que possamos fazer. Depois, precisamos saber quem é “aquele” que fortalece o autor. Sabendo que ele se refere a Deus, entendemos que Paulo “podia” tudo o que pudesse ser feito pela força dada por Deus. Assim, isso não poderia incluir, por exemplo, a prática do pecado, ou um entendimento egoísta da frase.
O versículo pode ser entendido como uma garantia de que tudo dará sempre certo para o cristão, ou que ele estará sempre “por cima” em qualquer situação? Seria uma declaração de pensamento positivo? Quando tomamos conhecimento das circunstâncias que envolvem o autor, abandonamos todas estas idéias erradas sobre o texto. Paulo estava preso quando escreveu aos Filipenses. Então, nem tudo estava “dando certo” no sentido humano de ver as coisas. O que Paulo queria dizer então? Para saber isso, precisamos ler todo o capítulo 4 de Filipenses, ou pelo menos os versículos que antecedem o 13. Vamos transcrever um pequeno trecho:
“Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias já tenho experiência; tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece.” (Fp.4.12-13).
O autor estava vivendo uma situação terrível, mas afirmou que estava fortalecido para suportar tudo aquilo.
Outro exemplo: Em Atos 16.31 estão escritas palavras de Paulo que disse “Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa”. Isto significa que a família de todo convertido será salva? Muitos são os que interpretam assim esse texto, o que não corresponde à realidade. Precisamos verificar a quem aquela palavra foi dirigida: ao carcereiro de Filipos. Paulo, talvez por uma revelação divina, disse que toda a família do carcereiro se converteria. Isto não significa uma promessa para qualquer crente em qualquer lugar. Foi apenas a experiência particular do carcereiro. Da mesma forma, o fato de Pedro ter andado sobre as águas não significa uma garantia de que todos os cristãos possam fazê-lo quando quiserem.
Paulo mesmo, em I Coríntios 7.16 disse: ”Como sabes tu, ó mulher, se salvarás teu marido? ou, como sabes tu, ó marido, se salvarás tua mulher?” Vemos então, que Paulo não cria nessa “doutrina” de salvação da família por haver nela um crente. De fato, Deus quer que todos se salvem e todos devem procurar levar sua família a Cristo. O erro está em entender Atos 16.31 como uma promessa ou doutrina.
O conhecimento contextual é um projeto para a vida. Isto envolve um estudo amplo da bíblia, da história e dos costumes dos tempos antigos.
3- ANÁLISE LÉXICO-SINTÁTICA
Quando lemos qualquer texto, uma das grandes dificuldades está nas palavras desconhecidas. Se simplesmente “pularmos” essas palavras, perderemos a mensagem. Precisamos procurar o significado para que cheguemos a uma interpretação correta.
A parte léxica da análise diz respeito ao significado das palavras isoladas. A parte sintática se refere à função das palavras dentro da frase, o que pode variar muito e conduzir a uma idéia bem diferente daquele que se obtém pelo estudo da palavra em si. Cada palavra é como um ingrediente que se adiciona ao bolo da frase.
Além do significado de uma palavra, precisamos saber qual é a sua classe gramatical, se é substantivo, adjetivo, numeral, advérbio, pronome, verbo, artigo, conjunção, preposição, etc. É preciso saber também as relações entre as classes e como uma interfere no sentido da outra. Por exemplo, localizado um adjetivo na frase, precisamos saber a qual substantivo ele se refere.
Em Gênesis 3.15, temos alguns pronomes pessoais e possessivos:
“Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”.
Se não entendermos bem a relação entre as palavras não entenderemos a mensagem, podendo, inclusive, inverter a posição dos personagens. Precisamos saber quem são as “pessoas do discurso”. Quem está falando? Com quem? O que está sendo dito e a respeito de quem?
Examinando o contexto, percebemos que Deus está falando com a serpente. Portanto, todos os pronomes relacionados à segunda pessoa, se referem à serpente. A “tua” semente é a semente da serpente. Os pronomes da terceira pessoa se referem à mulher, que é a pessoa de quem se fala. A “sua” semente é a semente da mulher. O pronome demonstrativo “esta” se refere à última semente mencionada na frase, ou seja, a semente da mulher. Sendo assim, compreendemos que a descendência (ou o descendente) da mulher esmagaria a cabeça da serpente e teria seu calcanhar ferido. As deficiências no conhecimento gramatical devem ser corrigidas através de estudos da língua portuguesa. Sem isso, é improvável que o aluno venha a compreender a gramática grega ou hebraica.
Uma palavra pode ter vários significados. Além disso, estes podem se dividir entre sentidos denotativos (literais) e conotativos (figurados). Qual é o sentido pretendido pelo autor? Observe o contexto. O gênero literário ajudará a determinar se o uso é literal ou simbólico, conforme veremos no estudo da hermenêutica especial.
Ao buscar o significado de uma palavra, será útil um dicionário de português. Nesse caso, estaremos esclarecendo os termos usados pelo tradutor e não pelo escritor bíblico. Isto é importante, mas pode ser necessário descobrir a palavra usada no grego ou hebraico e o seu sentido na época em que o livro bíblico foi escrito. Não estou propondo que o estudante faça sua própria tradução da bíblia, mas que pesquise as línguas originais nas seguintes situações:
- Quando houver dúvida em relação ao sentido da frase em português.
- Quando se encontrar diferença entre versões bíblicas.
- Quando se quiser aprofundar no conhecimento sobre as palavras-chaves do texto.
- Quando se estiver elaborando ou investigando doutrinas.
O significado de uma palavra em português pode não corresponder ao sentido bíblico. Por exemplo: “batizar” tem o sentido de “dar nome”, de acordo com o dicionário Aurélio. Contudo, isso não tem nenhuma relação com o significado bíblico, mas trata-se de um sentido adquirido através do costume de se dar nome por ocasião do batismo da criança na igreja católica.
Mesmo quando estudamos o significado de uma palavra nas línguas originais, precisamos ter alguns cuidados. Por exemplo, o significado das palavras no grego clássico nem sempre correspondem ao que elas significavam nos dias de Cristo, pois alguns séculos já haviam passado.
A etimologia é o estudo que nos permite conhecer o processo de formação de uma palavra. Descobrimos, assim, como os termos se uniram ou se transformaram para formarem uma palavra nova. Por exemplo, a palavra “longanimidade” é uma tradução de “makrothymia” (grego), que vem da união de duas palavras: “makros” (longo) e “thymia” (sentimento). Longanimidade tem esse sentido de “sentimento longo” ou paciência. É uma palavra que guardou o sentido dos termos que a produziram. Contudo, isto nem sempre acontece. Algumas vezes, uma palavra adquire outros sentidos com o uso e perde o seu sentido original. Portanto, a etimologia pode ser útil e esclarecedora, mas o estudante da bíblia não deve se prender aos sentidos dos termos formadores de uma palavra, como se eles estivessem obrigatoriamente presentes em todos os textos em que aquela palavra aparece.
As palavras adquirem novos sentidos na medida em que são usadas durante um período de tempo muito longo. Precisamos tomar cuidado para não aplicarmos determinado sentido sobre um texto bíblico escrito em uma época em que a palavra não tinha aquele significado. Por exemplo, a palavra “dynamus” (grego) significa “poder”. Daí, muitos séculos mais tarde, veio a palavra “dinamite”. Contudo, é incorreto pregar sobre textos bíblicos que mencionam a palavra “poder” dando a ela o “sentido explosivo da dinamite”. Não era essa a intenção do autor bíblico, pois em sua época não existia dinamite.
4- ANÁLISE TEOLÓGICA
Nem todo estudo bíblico é teológico. Teologia é o estudo sobre Deus e suas relações com o universo, especialmente com o homem. Ao estudarmos uma passagem bíblica, podemos estar concentrados em questões antropológicas, filosóficas e não necessariamente teológicas. Contudo, se assim fizermos, estaremos desprezando o principal aspecto da bíblia.
Fazemos análise teológica de um texto quando examinamos as lições e princípios nele existentes em relação aos parâmetros gerais da relação de Deus com o homem.
De acordo com Sebastião A.G. Soares, o texto bíblico em estudo “é como um fio de um tecido bem mais amplo que é o conjunto das Escrituras”. Precisamos ter uma visão global para compreendermos as questões que se encontram em pequenos trechos bíblicos. O objetivo da análise teológica é saber se determinada lição extraída de um relato bíblico pode ser aplicada na vida de qualquer servo de Deus em qualquer época. A pergunta chave é: existe um padrão imutável de relacionamento de Deus com o homem? De Adão até hoje, existe continuidade ou descontinuidade na relação de Deus com os homens? A bíblia é um livro teologicamente fragmentado ou existe unidade nele? A resposta a esta questão nos ajudará a formar alguns pressupostos hermenêuticos.
Existem algumas hipóteses de organização dos dados bíblicos que tentam demonstrar continuidade ou descontinuidade no modo de Deus se relacionar com os homens. Tais teorias vão desde uma continuidade completa até uma descontinuidade absoluta. As principais hipóteses são:
- Modelo “teologias, mas nenhuma teologia”
- Modelo dispensacional.
- Teoria Luterana.
- Teoria das alianças.
- Modelo epigenético.
1- Modelo “teologias, mas nenhuma teologia”.
- Elaborada por teólogos liberais, que vêem a bíblia como pensamento do homem sobre Deus e não como palavra de Deus para o homem. Não crêem na inspiração divina das Escrituras.
-Ênfase na descontinuidade.
-Não vêem uma teologia na bíblia, mas muitas teologias descontínuas.
2- Teoria dispensacional
- Elaborada por cristão sinceros que crêem na inspiração das Escrituras.
- Ênfase na descontinuidade.
- Dispensação – “período em que o homem é provado com respeito à sua obediência a alguma revelação divina específica” (Scofield).
- Cada dispensação seria destinada a pessoas diferentes, com ordens, circunstâncias e responsabilidades diferentes.
- Em cada dispensação o homem falha e Deus estabelece outra dispensação.
AS DISPENSAÇÕES
1- Da inocência ou liberdade – Adão antes do pecado.
2- Da consciência – desde a queda até Noé.
3- Do governo civil – de Noé até Abraão.
4- Da promessa – de Abraão até Moisés.
5- Da lei mosaica – de Moisés até Jesus.
6- Da graça – de Jesus até a sua 2a vinda.
7- Da Grande Tribulação – (este período não é considerado dispensação alguns teólogos).
Os teólogos dispensacionais se dividem em suas posições com relação a algumas questões de sua própria teoria. Alguns vêem as dispensações como unidades tão isoladas umas das outras que não seria possível, por exemplo, utilizar hoje nenhuma lição extraída do Velho Testamento, uma vez que estamos vivendo em outra dispensação. Outros teólogos que aceitam as dispensações defendem a tese de que existem entre elas alguns elementos de continuidade. Ensinam que a salvação, por exemplo, sempre foi pela graça e que a diferença entre os períodos está no modo de vida que o servo de Deus deveria apresentar após a salvação.
De qualquer forma, permanece uma dificuldade: como aplicar na vida dos crentes de uma dispensação as ordens divinas de outra dispensação?
Precisamos ser cuidadosos quanto ao nosso posicionamento, lembrando que a bíblia não menciona tal divisão da história em dispensações. A palavra “dispensação” aparece somente no Novo Testamento e com outros propósitos, significando “ato de conceder, entregar, ceder provisoriamente ou distribuir” (Dicionário Aurélio) (Ef.1.10; 3.2; 3.9; Col.1.25; I Cor.9.17).
3- Teoria luterana
Lutero afirmava que a lei e o evangelho estão sempre presentes nas Escrituras. A lei demonstra o ódio de Deus contra o pecado, devido à santidade divina. O evangelho demonstra a graça salvadora, o amor de Deus. Passagens que trazem ordens ou julgamentos apresentam lei – Mt.22.37. Passagens que trazem consolo ou salvação apresentam o evangelho – Gn.7.1. Outros textos trazem ambos os casos - João 3.36.
De fato, o Novo Testamento também contém lei para os servos de Deus, embora não estejamos sujeitos à lei de Moisés (A lei de Cristo – Gal.6.2; I Cor.9.21; lei de Deus – Rm.8.7; lei da fé – Rm.3.27; lei da liberdade – Tg.2.12; lei do Espírito de vida – Rm.8.2).
A teoria de Lutero enfatiza a continuidade nas relações de Deus com o homem no decorrer da história. Contudo, o modelo é simplista por não diferenciar Velho e Novo Testamentos, quando as diferenças são evidentes na bíblia. Suas corretas observações podem ser absorvidas por um modelo mais abrangente.
4-Teoria das alianças.
Esta teoria divide a relação de Deus com os homens em 2 alianças: das obras e da graça. A Aliança das obras iria da criação até a queda do homem. A Aliança da graça, desde a queda do homem até o presente.
A teoria é simplista. Não diferencia Velho e Novo Testamentos, embora concordemos que todos são salvos pela graça em todos os tempos. Além disso, a teoria não diferencia Israel e igreja.
A bíblia fala de duas grandes alianças que correspondem ao VT e ao NT, e não nas duas defendidas por esta teoria (Jr.31.31-32; Heb.8.6,13).
Além disso, a bíblia fala sobre alianças diversas: Noé, Abraão, Israel, Davi, igreja, o que se aproxima mais da teoria dispensacional.
5- Modelo epigenético
“Epigenia” significa mudança no fenótipo sem alteração do genótipo, ou seja mudança exterior em ser vivo durante seu processo de crescimento, enquanto que o DNA continua o mesmo.
Revelação progressiva – Analogia da árvore
A revelação divina é progressiva como o crescimento de uma árvore a partir de uma semente. A semente, a plantinha, a árvore nova e a árvore madura são perfeitas em cada estágio, embora sejam incompletas. Muda a aparência, mas permanece a essência. Temos, portanto, descontinuidade e continuidade.
Analogia da família
O tratamento dos pais para com seus filhos muda bastante durante a vida. Podemos dividir esse período em várias fases: gestação, amamentação, restante da infância, adolescência, juventude, idade madura. A forma de orientar, cuidar ou corrigir os filhos muda bastante, ou seja, é descontínua, mas o amor dos pais é o elemento de continuidade em todo esse processo.
Analogia do edifício
Pensemos nas fases de construção e utilização de um edifício. Elas são bastante diferentes. As equipes de trabalho são diferentes, bem como suas responsabilidades, seus propósitos, suas normas e procedimentos. Da mesma forma, podemos ver Israel e a igreja, como duas “equipes” de trabalho diferentes. A primeira estava preparando um cenário para a 1avinda de Cristo. Depois que ele veio, estabeleceu a igreja com propósitos diferentes e regras diferentes. Isto não significa incoerência, mas mudanças necessárias. Hoje, não precisamos repetir o que Israel fazia no Velho Testamento. Seu propósito já foi cumprido. Contudo, para que o “edifício” exista e seja bem utilizado, existem propósitos gerais e princípios gerais de construção, manutenção e utilização que são sempre válidos. A segunda “equipe” não precisa construir, mas precisar manter o que foi construído. Temos, portanto, continuidade e descontinuidade, sem contradição.
O “modelo epigenético” utiliza o que há de bom na teoria dispensacional, embora dê maior destaque à continuidade.
A promessa feita por Deus a Abraão é um fator de unidade, continuidade, em toda a história desde então, apesar das variações em outros aspectos da teologia.
Em resumo, apresentamos alguns elementos de continuidade e descontinuidade na bíblia e nas relações de Deus com os homens.
CONTINUIDADE
|
Deus
|
Seu caráter (amor, justiça, etc)
|
Seu propósito geral (salvar)
|
Graça divina
|
Salvação
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Cristo
|
Espírito Santo
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DESCONTINUIDADE
|
Israel
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Igreja
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Cultura
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Circunstâncias
|
Propósitos específicos
|
Leis específicas
|
Posicionamento humano.
|
Como escolher entre os modelos apresentados?
O leigo acredita na opção defendida por sua denominação. O estudante corre o risco de aceitar o primeiro modelo estudado. É preciso deixar claro que todos os modelos são apenas teorias sobre o relacionamento de Deus com os homens. Para que se escolha uma delas, o estudante deverá confrontar as afirmações de cada caso com os dados bíblicos.
O modelo escolhido será determinante para a interpretação bíblica, principalmente no momento da aplicação das lições extraídas do texto. Se pensamos que a relação de Deus com os homens é contínua em todos os aspectos, então entenderemos que todas as ordens de Deus para os seus servos no Velho Testamento são aplicáveis hoje. Se pensarmos que a relação de Deus com os homens é totalmente descontínua, então não nos interessaremos pelo Velho Testamento. Se tivermos uma visão que englobe tanto continuidade quanto descontinuidade, procuraremos extrair princípios espirituais do Velho Testamento para aplicação na atualidade e desconsiderar práticas que estavam restritas às circunstâncias daqueles tempos.
Consideramos o modelo epigenético como o mais coerente com os dados bíblicos, englobando o que há de melhor da teoria dispensacional, teoria luterana e das alianças, sendo que nenhuma delas satisfaz isoladamente. Com relação à teoria “teologias, mas nenhuma teologia”, consideramos tratar-se de um grande equívoco.
BIBLIOGRAFIA
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STEIN, Robert H., Guia Básico Para a Interpretação da Bíblia – Ed.CPAD
PIERSON, A.T., Chaves Para o Estudo da Palavra – Ed.Tesouro Aberto.
STUART, Douglas, FEE, Gordon D., Entendes o que lês? – Ed.Vida Nova.
CARSON, Donald A., Os perigos da Interpretação Bíblica - Ed.Vida Nova.
ARTHUR, Kay, Como Estudar Sua Bíblia Pelo Método Indutivo – Ed.Vida.
VIRKLER, Henry A., Hermenêutica Avançada – Ed.Vida
Bíblia de Referência Thompson - Tradução de João Ferreira de Almeida - Versão
Contemporânea - Ed. Vida
Bíblia Apologética - Tradução de João Ferreira de Almeida – ICP Editora.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa– Ed.Nova Fronteira.
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