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Ricardo Gondim
Tem dias que acordo com a beleza tentando
escapulir de dentro do meu peito. Não encontro meios de permitir que ela vaze.
Um universo de boas palavras se revolve nas minhas entranhas. Tento poetar me
fazendo amigo dos sonetos. Sei que a cadência das frases feitas em verso pode
me socorrer. A beleza da poesia alivia como uma aragem fresca. A asfixia
convulsiva da angústia não resiste a graça avassaladora de um poema.
Mas sou incompetente para o verso
metrificado. Resta-me deixar os dedos à vontade. E eles bailam na prosa. Bordo
pensamentos numa sintaxe pouco alinhada. Redijo como o menino que precisa
mostrar a redação. É jeito de desabafar.
Escrevo como quem serve a eucaristia. Minha
sede de viver deixa o pão que distribuo sem fermento. Não reflito sobre ruínas.
Parto com o anseio de ver-me livre de algemas. Grilhões que apertam em meus
pulsos me estimulam. Encarno a tarefa como artesão atrapalhado; talvez,
pensador transversal; quem sabe, amante repreensível. Trago, entretanto, dos
porões da alma a força que energizou a minha inspiração. Escrevo para me
construir livre. Faço das palavras o libelo da delicadeza. Minha canhota me
enreda. Ladeio os que dão a cara a bater contra a intolerância, o preconceito,
a discriminação.
Escrevo em busca da beleza trágica do
saltério bíblico: na contradição de esperar e odiar, amar e desdenhar. Quero,
diante do absurdo da vida, celebrar prados verdejantes e constelações
coriscantes. Quero, no vale da sombra da
morte, dizer: eu creio. Quero, na angústia de sentir o pé inimigo no pescoço,
ter os olhos serenos.
Escrevo em busca da beleza apaixonada dos
boêmios: na celebração do amor essencial. Quero cantar à musa anônima, que
encanta os amantes. Quero nunca perder um olhar de terno. Quero não deixar a
sensibilidade escoar no ralo da eficiência. Quero emocionar-me com o amor
romântico, e tantas vezes inconsequente, dos jovens. Quero ambientes
intimistas, pouco iluminados, plenos de insinuações. Quero o imaginário sem
aspereza.
Escrevo em busca da beleza persuasiva dos
pensadores: na difícil tarefa de repensar, tensionar ideias, provocar reflexão.
Quero mergulhar nos compêndios que desalojam o obscurantismo. Quero debulhar,
com lentidão, as espigas que nascem do trigal filosófico. Que belo sonho:
sentar em tertúlias.
Escrevo em busca da beleza criadora dos
romancistas: na feliz aventura de viajar a mundos fantásticos. Quero ver-me na
pele de protagonistas que ousam desafiar demônios, encarar exércitos, sonhar
com cidades submersas e, sofrer, sobretudo sofrer. Só eles conseguem ensinar o
que é viver e morrer por mãos alheias.
Escrevo em busca da beleza solidária dos
santos: no desprendimento de amar sem considerar o galardão. Quero celebrar a
vida dos Franciscos de Assis, dos Nelsons Mandela. Na direção do próximo, eles
andaram as milhas que jamais tive coragem de encarar. Quero aprender o segredo
de não ter a vida por preciosa, como Oscar Romero, mártir de uma morte
anunciada. Quero chegar ao fim da existência sem o bolor que noto na pele de
quem se acovarda diante do mal.
Dou razão a Vinicius de Moraes: “Só a
poesia pode salvar o mundo de amanhã”. Os poetas são vigias. Eles guardam as
muralhas da cidade; são arautos do divino. De seu alarido frágil vem uma
certeza: o mal ainda não se mostrou forte o suficiente para arrancar a Imago
Dei do coração de homens e mulheres. Do alto da torre, tirania e opressão tomam
conhecimento: o brado da vida pertence aos que amam o Bem. A beleza que tenta
sair do meu peito é compromisso transubstanciado em palavras.
Soli Deo Gloria
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