segunda-feira, 12 de março de 2012

Alegrias e perigos de quem escreve



Ricardo Gondim

“Verba volant, scripta manent – Palavras voam, a escrita permanece”.

Discursos inflamados, retóricas contundentes, pregações categóricas nunca alcançarão a densidade da palavra escrita. Do texto nascem as controvérsias.  Quem se atreve na meticulosa arte da redação, deve encarar o cursor como um aceno potencialmente desastroso. Escrever é colocar-se em linha de tiro.

Todo autor se entrega ao capricho do leitor. Suas frases jazem à espera de interpretação, pulsam no aguardo de quem as perscrutem. Sem pressa, com luvas de pelica ou com facas afiadas alguém se atreverá interpretá-las.

Não existe exegese objetiva. Os que antipatizam, viram açougueiros, prontos a retalhar tanto a obra como seu criador. Quem gosta, verá beleza até onde não existe. Vetustos críticos e jovens admiradores se revezarão sobre o texto que lhes chega às mãos.

Alguns criticam o atrevimento de contestar teses que alcançaram consenso no passado. Divergência ao que foi considerado legítimo pela academia, sínodo ou diretoria é visto como doença. “Relativismo!”, xingam. Outros procuram amedrontar afirmando que os argumentos que fundamentais do capítulo fragmentam a “verdade” – só não conseguem explicar o que é uma “verdade fragmentada”.

Sobram os que assumem uma postura discriminatória; desmerecendo o autor antes de analisar a obra. Cegos com as próprias traves e inquietos com os argueiros alheios, psicanalisam a pessoa antes de lerem. Cuidadosos em diminuir quem pouco conhecem, não se incomodam de encarnar o Saliere do filme “Amadeus”; não se conformam que “Deus possa derramar tanto talento sobre devassos como Mozart”. Para alguns, ninguém deve ouvir o alucinado Beethoven ou o homossexual Tchaikovsky; ler  o anticlerical Machado de Assis ou o comunista Graciliano Ramos – “Imagina, gostar de livro escrito por um comunista?”; admirar o adúltero Martin Luther King; gostar do suicida Van Gogh; e nessa linha, sequer acolher os argumentos do escravocrata Paulo de Tarso.

Muitos vivem a idolatria do passado, procurando engessar dogmas, doutrinas, confissões de fé. Daí o susto quando um escritor contemporâneo se atreve lançar critica a Freud, Marx, Lutero, Calvino, Santo Agostinho, Papa Pio XII ou quem quer que seja.

“Sã doutrina” inexiste. Não há um compêndio que abranja as verdades absolutas. A história tanto da filosofia como da teologia nunca deixou de ser tumultuada, conflitiva, discordante. Por isso, se escreveu tanto. Como nem sempre prevaleceram as melhores ideias, mais livros serão escritos. O grupo que resistiu o inquisidor Torquemada ou que viu o anabatista Müntzer ser assassinado gostaria de ter tido a sorte de preservar algumas páginas. Não faz qualquer sentido rasgar um livro com o argumento: “Essa ideia não faz parte da teologia oficial, canônica, da igreja”.

Impossível aceitar que Savanarola, o Concílio de Trento ou a Confissão de Westminster tenham publicado toda a verdade sobre Deus, salvação, igreja. Pentecostais amargaram décadas de preconceito. Eles não tinham uma teologia escrita. Mesmo sem discordar dos pressupostos sistemáticos do Movimento Fundamentalista nos Estados Unidos propunham que o Espírito era capaz de se revelar na comunidade da fé, sem os limites do livro. Sofreram como seita por anos. E, ironia das ironias, os pentecostais passaram a  assumir o papel de apologetas da reta doutrina com inúmeros livros sobre “Seitas e Heresias”.

Daí a primeira barreira do escritor em seu ofício: a autocensura. Sucumbir ao medo é criar platitude. Patrulhamento ideológico, filosófico ou teológico procura intimidar. Mesmices só se perpetuam quando triunfam os que procuram transformar o debate de ideias em confrontos pessoais.

Ao escrever o autor se depara com gente que imagina conhecer tudo, absolutamente tudo. Gente disposta a morrer (e matar) por suas convicções. Ele sabe que sua redação pode cavar mais fundo o fosso que impossibilita o diálogo. Sabe também que sua escrita se estenderá sobre preconceitos aproximando as pessoas mais diferentes. Nietzsche afirmou: “As convicções são inimigas da verdade, bem mais perigosas que as mentiras”.

Muita gente a recitar os mesmos argumentos dá segurança aos que dependem da estabilidade para sobreviver. A ideia pode por abaixo o edifício que abriga e sustenta o intelectual orgânico. Então, melhor abandonar os argumentos e defender a Deus, a santa igreja, a sã doutrina, o partido, a pátria, a raça ou o clube.

Quando o pensamento inquieta, tumultuam-se os estádios, acendem-se as fogueiras de livros, enfiam-se estiletes debaixo das unhas e lincham-se os hereges. Os discordantes, mais que pecadores, merecem o inferno. A página escrita pode custar os olhos, o pescoço. Os livros rasgados, as reações destemperadas à liberdade de imprensa, os receios de que mais pessoas acolham o que foi digitado, distribuído, revela o poder que o escritor possui. Ao empunhar a caneta, dedilhar o teclado e apertar “Send – Enviar” ele cria, destrói, fortalece e angustia.

Soli Deo Gloria

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