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Ricardo Gondim
“Verba volant, scripta
manent – Palavras voam, a
escrita permanece”.
Discursos inflamados,
retóricas contundentes, pregações categóricas nunca alcançarão a densidade da
palavra escrita. Do texto nascem as controvérsias. Quem se atreve na
meticulosa arte da redação, deve encarar o cursor como um aceno potencialmente
desastroso. Escrever é colocar-se em linha de tiro.
Todo autor se entrega ao
capricho do leitor. Suas frases jazem à espera de interpretação, pulsam no
aguardo de quem as perscrutem. Sem pressa, com luvas de pelica ou com facas
afiadas alguém se atreverá interpretá-las.
Não existe exegese
objetiva. Os que antipatizam, viram açougueiros, prontos a retalhar tanto a
obra como seu criador. Quem gosta, verá beleza até onde não existe. Vetustos
críticos e jovens admiradores se revezarão sobre o texto que lhes chega às
mãos.
Alguns criticam o
atrevimento de contestar teses que alcançaram consenso no passado. Divergência
ao que foi considerado legítimo pela academia, sínodo ou diretoria é visto como
doença. “Relativismo!”, xingam. Outros procuram amedrontar afirmando que os
argumentos que fundamentais do capítulo fragmentam a “verdade” – só não
conseguem explicar o que é uma “verdade fragmentada”.
Sobram os que assumem uma
postura discriminatória; desmerecendo o autor antes de analisar a obra. Cegos
com as próprias traves e inquietos com os argueiros alheios, psicanalisam a
pessoa antes de lerem. Cuidadosos em diminuir quem pouco conhecem, não se incomodam
de encarnar o Saliere do filme “Amadeus”; não se conformam que “Deus
possa derramar tanto talento sobre devassos como Mozart”. Para alguns,
ninguém deve ouvir o alucinado Beethoven ou o homossexual Tchaikovsky;
ler o anticlerical Machado de Assis ou o comunista Graciliano
Ramos – “Imagina, gostar de livro escrito por um comunista?”; admirar o
adúltero Martin Luther King; gostar do suicida Van Gogh; e nessa linha, sequer
acolher os argumentos do escravocrata Paulo de Tarso.
Muitos vivem a idolatria
do passado, procurando engessar dogmas, doutrinas, confissões de fé. Daí o
susto quando um escritor contemporâneo se atreve lançar critica a Freud,
Marx, Lutero, Calvino, Santo Agostinho, Papa Pio XII ou quem quer que seja.
“Sã doutrina” inexiste.
Não há um compêndio que abranja as verdades absolutas. A história tanto da
filosofia como da teologia nunca deixou de ser tumultuada, conflitiva,
discordante. Por isso, se escreveu tanto. Como nem sempre prevaleceram as
melhores ideias, mais livros serão escritos. O grupo que resistiu o inquisidor
Torquemada ou que viu o anabatista Müntzer ser assassinado gostaria de ter tido
a sorte de preservar algumas páginas. Não faz qualquer sentido rasgar um livro
com o argumento: “Essa ideia não faz parte da teologia oficial, canônica, da
igreja”.
Impossível aceitar que
Savanarola, o Concílio de Trento ou a Confissão de Westminster tenham publicado
toda a verdade sobre Deus, salvação, igreja. Pentecostais amargaram décadas de
preconceito. Eles não tinham uma teologia escrita. Mesmo sem discordar dos
pressupostos sistemáticos do Movimento Fundamentalista nos Estados Unidos
propunham que o Espírito era capaz de se revelar na comunidade da fé, sem os
limites do livro. Sofreram como seita por anos. E, ironia das ironias, os pentecostais
passaram a assumir o papel de apologetas da reta doutrina com inúmeros
livros sobre “Seitas e Heresias”.
Daí a primeira barreira
do escritor em seu ofício: a autocensura. Sucumbir ao medo é criar platitude.
Patrulhamento ideológico, filosófico ou teológico procura intimidar. Mesmices
só se perpetuam quando triunfam os que procuram transformar o debate de ideias
em confrontos pessoais.
Ao escrever o autor se
depara com gente que imagina conhecer tudo, absolutamente tudo. Gente disposta
a morrer (e matar) por suas convicções. Ele sabe que sua redação pode cavar
mais fundo o fosso que impossibilita o diálogo. Sabe também que sua escrita se
estenderá sobre preconceitos aproximando as pessoas mais
diferentes. Nietzsche afirmou: “As convicções são inimigas da verdade, bem
mais perigosas que as mentiras”.
Muita gente a recitar os
mesmos argumentos dá segurança aos que dependem da estabilidade para
sobreviver. A ideia pode por abaixo o edifício que abriga e sustenta o
intelectual orgânico. Então, melhor abandonar os argumentos e defender a Deus,
a santa igreja, a sã doutrina, o partido, a pátria, a raça ou o clube.
Quando o pensamento
inquieta, tumultuam-se os estádios, acendem-se as fogueiras de livros,
enfiam-se estiletes debaixo das unhas e lincham-se os hereges. Os discordantes,
mais que pecadores, merecem o inferno. A página escrita pode custar os olhos, o
pescoço. Os livros rasgados, as reações destemperadas à liberdade de imprensa,
os receios de que mais pessoas acolham o que foi digitado, distribuído, revela
o poder que o escritor possui. Ao empunhar a caneta, dedilhar o teclado e
apertar “Send – Enviar” ele cria, destrói, fortalece e angustia.
Soli Deo Gloria
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