GORJEIOS E
GRUNHIDOS
RICARDO GONDIM
RICARDO GONDIM
Acabei de ver “A pele que
habito” de Pedro Almodóvar com o estômago revirado. Identifiquei-me com o vilão
da história. Eu me via como a encarnação da personagem fictícia. Quantas vezes
tentei fazer os outros ficarem parecidos com um modelo de minha mente. Nesse
anseio, alucinei. Eu já cheguei a considerar-me capaz de mudar quem
eu quisesse – mal sabia que eu só queria fabricar objetos de prazer e de ódio.
Transformei minhas
alucinações em certezas. Fiz da vocação um instrumento de domínio. Pior, tentei
tornar-me capataz de um Deus que moldaria o mundo ao meu padrão.
Recordo uma fábula de
Rubem Alves. “Certa feita, os urubus tomaram o poder na floresta e impuseram
seu estilo de vida a todos os animais. Sua culinária, sua moda, sua estética e
mesmo suas preferências musicais tornaram-se o padrão de referência para todos.
Os pintassilgos, muito cordatos, esforçavam-se sobremaneira para corresponder
às exigências dos urubus. Entretanto, os pobres pintassilgos não conseguiam se
acostumar ao cardápio de carniça que deveria substituir sua dieta de frutas,
tampouco conseguiam andar como os urubus, reproduzir-lhes os requebros e os
grunhidos que os urubus chamavam de música. Observando os desajeitados
pintassilgos, os urubus concluíram sumariamente: ´Não adianta. Um pintassilgo
sempre será um urubu de segunda categoria’”.
A beleza de qualquer
floresta depende da diversidade. Os urubus são necessários, mas o mundo constrangido
aos seus modos ficaria soturno, feio, grotesco. A beleza da vida está no
respeito à identidade do outro. A grandeza de qualquer pessoa ou grupo reside
em sua capacidade de coexistir com o diferente, sem a tentação de esmagar os
que não dançam o dois-pralá-dois-pracá de desde sempre.
Nas relações
assimétricas, ou os fortes abrem mão do poder ou eles esmagam os fracos. O bom
convívio passa pela Lei Áurea de todos os credos: “Trate o próximo como você
gostaria de ser tratado”. Força bruta não muda nada – sequer muda alguém.
Estupidez entrincheira opostos, acirra preconceitos, exarceba ódios.
Tertuliano, um dos
primeiros pensadores cristãos, dizia: “Deus, quando dá o poder… assim com o
mesmo poder delega nele a imitação de sua paciência”. Ou seja, quem se enxerga
comissionado por Deus a representá-lo, deve, obrigatoriamente, sentir-se
impulsionado a manifestar a paciência divina e não a brutalidade. Será que
Tertuliano ruminava a frase de Paulo: “Não sabes que é a bondade de Deus que
leva o homem ao arrependimento”? (Romanos 2.4).
Uma teocracia evangélica
se degradaria, rapidamente, em um reino de urubus. O sonho de consolidar o
cristianismo como um Sacro Império deve manter-se sepultado nos escombros dos
tempos medievais.
Baixem as armas,
sacerdotes. Baixem o tom, profetas. Ateus e agnósticos, optem pela brandura.
Dialoguemos. A humanidade cansou-se de guerras. Prefiramos ouvir a
multicolorida sinfonia de Bach à cadência monótona dos hinos marciais. Temos
tanta injustiça para enfrentar, tantos miseráveis para socorrer, tantos
indefesos para cuidar. Não criemos mais uma guerra porque achamos nosso
gorjeio, o mais afinado.
Soli Deo Gloria
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