Confesso que os “defensores da fé” me
cansam.
Cansam porque não produzem nada a não ser a
crítica de quem pensa diferente. E para julgarem quem pensa diferente, tendo
“base histórica” e “bíblica”, muitos deles utilizam-se dos cinco solas, que
nada mais são do que afirmações, em latim, sobre aspectos que “delineariam” a
confissão de fé cristã nos tempos “reformados” (o excesso de aspas é
inevitável).
O interessante é que até os cinco solas são
frutos de interpretação (como toda leitura da Bíblia o é) e de um tempo, de uma
era. Torná-los imutáveis e monointerpretativos seria uma afronta ao próprio
espírito da Reforma que dizem acolher. E quando se tornam engessados, viram
arma nas mãos de seus utilizadores e, claro, a favor da “defesa da fé”.
Ok! Mas… que fé?
Aliás, que Cristo? Que Graça? Que
Escrituras? Que Glória de Deus?
Não adianta você me tirar da cartola os
cinco solas… primeiro tem que me dizer do que você está falando. Pode ser que
usemos a mesma frase (em latim) para dizermos coisas totalmente diferentes,
entendeu?
Vamos aos exemplos:
Quando eu digo SOLA FIDE (somente a fé),
falo da experiência com o sagrado, com o intangível, o numinoso, o
transcendente. E essa experiência não é privilégio só dos que têm a Bíblia como
“regra de fé e prática”. A fé não tem copyright. Não é propriedade exclusiva de
um grupo, muito menos de um livro. Fé é algo tão pessoal e místico que não me
cabe duvidar da experiência do outro. Pode ser que ele, o outro, esteja
experimentando uma face de Deus que eu ainda desconheço, por isso,este outro
merece, no mínimo, o meu respeito.
Quando um “defensor da fé” diz SOLA FIDE,
em primeiro lugar ele está falando do seu objeto de defesa. Fé deixa de ser a
experiência para ser um objeto de defesa. E se for tido como experiência TEM
QUE ser a MESMA experiência dele, se não, não é “verdadeira”. A experiência que
é diferente da dele é um inimigo a ser combatido! Para isso envidará esforços,
elegerá hereges, acenderá fogueiras. O importante é “batalhar pela fé uma vez
entregue aos santos”. Fé, neste caso, é motivo de luta, de guerra, de defesa!
Quando eu digo SOLO CHRISTUS (Somente
Cristo), estou falando de uma pessoa. O Deus encarnado, a Palavra feita gente,
Emanuel, aquele que traduz em si o amor de Deus pela humanidade, tornando-se
humano. De tão humano, divino! É amor tomando forma, cheiro, toque, voz… e,
seguindo o seu exemplo, tornamo-nos melhores seres humanos. Quando digo o SOLO
CHRISTUS me vem à mente que toda salvação passa por ele, o segundo Adão, e que
se o primeiro Adão torna o pecado “universal”, o segundo Adão torna a salvação
“universal”, sem mérito ou demérito de quem quer que seja. Se diferente disso,
o “erro” do primeiro Adão seria mais forte e mais poderoso do que o “acerto” do
segundo Adão. Por que a tal “solidariedade da raça” só vale para o pecado e não
para a salvação?
Porém, quando um “defensor da fé” diz SOLO
CHRISTUS, ele está dizendo que só a salvação na confissão de fé dele sobre o
Cristo. Que só a salvação no NOME de “Jesus”. E quem não confessar esse NOME,
por mais que nunca tenha ouvido falar dele, ou por mais que já viva na prática
os seus ensinamentos, é um coitado, réu do inferno eterno. Talvez um
predestinado mesmo à perdição, obra do grande amor de Deus, que cria uns
eleitos para a salvação e outros para torrarem eternamente numa grande fogueira
que Ele mesmo criou para lançar aqueles que Ele mesmo determinou que não
creriam nEle. Quanto amor! Até porque o CHRISTUS só derramou seu sangue por
esses “preferidinhos”, infelizmente deixando de fora todos os outros, tão
amados de Deus quanto os eleitos, mas, por sua infinita soberania e poder,
incapazes de chegarem à salvação.
Quando eu digo SOLA GRATIA (Somente a
Graça), estou falando de graça mesmo, sem divisão, sem preferências. Falo de
algo tão louco e absurdo que faltam-me palavras para descrever sua “ação”. A graça
é injusta ao salvar gente “do bem” e gente “do mal”, gente “certinha” e gente
“torta”, porque é graça, e porque graça atinge gente, seja a “gente” que for. E
sua abrangência é ilimitada. Não há confissão de fé capaz de detê-la! Não há
conceito que possa diminuir seus efeitos e seus desmandos. Sim, a graça é um
desmando de Deus! Subverte toda a lógica e toda a noção que temos de “justiça”.
É manifestação de Deus para todos, indistintamente. Creio numa graça que abraça
prostitutas, gays, políticos, e até mesmo… religiosos.
Mas, quando um “defensor da fé” diz SOLA
GRATIA, em primeiro lugar ele precisa distinguir a graça da graça. Como assim?
É óbvio! Existe uma graça “comum” e uma outra, “especial”. Sim, é isso mesmo!
Existe uma graça de segunda categoria, tipo aqueles cartões de natal que
mandamos pra quem nem conhecemos, desejando simplesmente “boas festas”, e há
uma graça caprichada, de primeira, como cartões escritos à mão, cheios de amor,
com o cheiro da pessoa amada. A graça “comum” está aí para todos, “quem quiser
pode chegar”. Já a graça “especial”, infelizmente (ou felizmente – para eles)
não pode atingir a todos, é privilégio dos eleitos, estes sim, podem desfrutar
de toda a graça que Deus tem pra dar, mas só pra eles. E graça aqui, deve ser
entendida como favor imerecido também, é claro, mas… ai daquele que não
observar os mandamentos!
Quando eu digo SOLA SCRIPTURA (Somente a
Escritura), estou falando de uma carta de amor, inspirada por Deus, mas escrita
por homens, contando histórias de seu povo, conforme seu entendimento temporal
das realidades ao seu redor. Nesta carta, que fala muito mais da percepção que
os homens, em seu tempo, tinham de Deus, percebo um Ser divino em todo tempo
buscando relação com toda a humanidade. Um Deus que tem prazer no diálogo, na
amizade, e que como prova maior dessa busca, se diminui, se enfraquece, e se
faz homem, não porque “não tinha outra opção”, mas porque tanto amor tinha que
ser demonstrado e vivido na sua completude, no ser igual ao ser amado. SOLA
SCRIPTURA se manifesta quando percebo a carta de amor em toda sua amplitude e
carinho, culminando na Palavra encarnada, o CHRISTUS. Por isso, qualquer
interpretação que fuja do CHRISTUS e do amor encarnado nEle, causa-me
estranheza. Aliás, o SOLA SCRIPTURA deve sempre levar em conta que QUALQUER
leitura já é, em si, uma interpretação, logo, uma aposta e, se tanto, passível
de erro.
Porém, quando um “defensor da fé” fala SOLA
SCRIPTURA, ele está falando de um MANUAL. E, se é um manual, tudo está ali,
resolvidinho, respondido, com a seção de “perguntas e respostas” completa, sem
variações. Pecou? O manual traz o castigo, a forma de reprimenda, e o modelo de
re-aceitação. Com o manual, é fácil saber quem é o certo e quem é o errado,
afinal a equação é simples: faz tudo o que o manual diz: é bom! Vacila em
artigos do manual: é mau! E tudo está lá, detalhadamente. Pastores são ungidos
do Senhor, logo não devem ser questionados. Gays queimarão no fogo eterno.
Mentirosos, orgulhosos, avarentos, ops… pulemos essa parte (aqui o manual deve
ter cometido algum equívoco).
Finalmente quando eu digo SOLI DEO GLORIA
(Glória somente a Deus), penso num Deus
que é glorificado em todo o mundo, por gente de todas as tribos, raças, línguas
e nações que, mesmo não falando “O NOME”, amam uns aos outros, praticam o bem,
são capazes de dividir, de compartilhar. Vejo Deus glorificado nas ações de uma
Madre Teresa de Calcutá, repartindo sua vida entre os leprosos de uma índia
fragmentada pelas castas, da mesma forma que vejo a glória de Deus num homem
como Ghandhi, capaz de liderar uma revolução não armada e que influenciará um
pastor negro nos Estados Unidos a fazer a mesma coisa. Vejo a glória de Deus
quando milhares de pessoas, de todos os credos, gêneros e cores se unem numa
corrente de solidariedade, como vi de perto em minha cidade, Teresópolis,
atingida por uma tragédia sem precedentes em janeiro de 2011.
Entretanto, quando um “defensor da fé” diz
SOLI DEO GLORIA, ele é capaz de ver a glória de Deus não nas pessoas que se
solidarizam, mas na própria tragédia em si. Um Deus que mostra a sua glória
através da sua ira! Um Deus que é glorificado mesmo numa atitude insana como a
de um louco que invade uma escola e atira em crianças indefesas, matando vidas
e sonhos. Um “defensor da fé” dá glórias a Deus por isso, e exalta a Sua
soberania. A glória de Deus também é manifesta na destruição dos povos pagãos e
finalmente, será exercida em toda a sua plenitude nos tempos finais, quando os
eleitos herdarão os céus, e Deus, para a Sua própria glória, lançará os
não-eleitos na churrasqueira da eternidade: o inferno!
E quem está certo? Não sei!
Só pretendo com este texto provocar a todos
que se julgam donos da verdade. Pode ser uma pretensão descabida, mas tentem
fazer esse exercício. Tentem imaginar que o “outro” pode ter razão. Assim como
eu mesmo posso estar errado em muitas das minhas “visões”.
Estamos navegando naquilo que não é
palpável, logo, tudo o que dissermos será fruto daquilo que somos, daquilo que
pensamos, antes mesmo que o texto nos fale. E somos seres sujeitos À mudança,
logo, não me cabe o julgamento de quem quer que seja. Que entendamos que, na
sola dos “cinco solas”, muitas vezes colocamos nossas conveniências, aquilo que
nos protege. Na sola (na base) dos nossos “cinco solas” na verdade estamos nós
mesmos, com nossas esquisitices e doenças, logo, nossas interpretações falam
muito mais de nós que dos reformadores.
E ainda mais, aos “reformados” cabe uma
responsabilidade maior de não estacionarem em Genebra, ou em Wittemberg, ou
seja lá onde for… a verdade, se é que concordamos que se manifesta em uma
PESSOA, é dinâmica, tenta ouvir o seu tempo, tem o seu linguajar, tenta
responder às suas próprias perguntas e não as do passado. Igreja reformada,
sim, mas não engessada. Sempre se reformando!
Como disse, pode ser que eu esteja errado,
e, se for um dos eleitos, riremos de tudo isso na “eternidade”. E se eu não
for, sem problemas, vocês estarão ocupados demais e nem se lembrarão das pobres
almas no inferno eterno.
Que Deus nos ajude!
José Barbosa Junior
Crer e Pensar
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