Via Mundo Da Anja
Ricardo Gondim
Acordo. Abro a janela. O sol invade o quarto sem pedir licença. A
vida se adensa em torrente luminosa. Não percebo nada de extraordinário. Apenas
a alegria de notar o dia escancarado. A alegria de viver é excepcional. Não
existe mal capaz de sufocar o bem que surge assim, em absoluta gratuidade.
As vinte e quatro horas seguintes serão
curtas. A efêmera felicidade se mostrará
mais forte que o poder do medo. – “Basta a cada dia seu próprio mal”. Com a
alvorada renovou-se o mistério de me sentir renascido das cinzas.
Celebro a vida. Faço festa. Penduro
bandeirolas nos salões de minha alma. Enfeito o rosto. Perfumo os braços.
Acendo uma vela. Tiro a prataria da gaveta. Limpo as taças. Distribuo convites
para uma roda de conversa. Promovo saraus para brincar com rimas.
Faço-me poeta, de tão contente. Se o
lamento se intrometer, abraço o amigo. Permito que o velho que existe em mim
fale seus aforismos. Respondo ao “por quê?” infantil de meu coração.
Não me condeno a esperar o próximo feriado.
Grito ao vento um imperativo: todos os dias merecem atenção indivisível.
Diante do imponderável, quero mostrar-me
destemido. Repito: o imprevisível não ameaçará. Não vou parar a minha dança
porque alguém alertou sobre o perigo inevitável. Disponho-me a enfrentar
qualquer despenhadeiro. Tento fugir das pretensões narcísicas. Todo novo começo
é na verdade a continuação de muitas existências e histórias que me
antecederam. Antes de mim, a vida já pulsava. Nunca saberei como terminará a
corrida que me foi proposta. Sei com certeza que alguém me sucederá.
Convivo com o inferno e o céu que o outro
representa. No próximo, encontro tormento e esperança. Seus olhos, frestas
magníficas, revelam os monstros e os deuses que habitam as profundidades da
alma. Eles são ao mesmo tempo espelhos do amor eterno e da barbárie terrena. Eu
também sou o próximo de alguém: santo e,
simultaneamente, depravado. Vivem em mim personagens esplêndidos e sórdidos.
Sou ator. Sei o dever de representar diversos papeis. Com maestria consigo
transformar-me em herói e vilão. Muitas vezes erro na hora de trocar as
máscaras. Conheço o segredo de Pandora e fui batizado no Espírito Santo. Adoro
a Deus e simpatizo com a esperteza da serpente.
Nessa ambiguidade, desejo perceber beleza.
Não quero ser indiferente à simplicidade das crianças que se beijam roçando o
nariz duas vezes, ao altruísmo de quem ousa abrigar a prostituta enferma, ao
empenho do enfermeiro que faz serão ao lado do moribundo, à resiliência da
mulher que lava o marido que padece de Alzheimer, à doçura da filha que empurra
a cadeira de rodas da mãe pelo parque.
Hoje o sol nasceu como um convite à
meditação. Em algumas horas, no momento breve em que a noite engolir a luz,
devo voltar a pensar na vida, em Deus, em mim. Farei um voto na viração do dia:
– Deus, prometo, recitar poesia com a delicadeza que as palavras merecem; ouvir
música de olhos fechados, do jeito que oro; e jantar com reverência, como se
fosse a minha Última Ceia.
Soli Deo Gloria
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