Ricardo
Gondim
A
casaca marrom do monge Bertoldo, morto há dois anos, seria vendida em leilão.
Considerado um santo homem alguém arremataria sua veste como relíquia.
Mas
Margô não a desejava como
um talismã. Ela tinha outros planos para a roupa monástica. Passou o dia
procurando e juntando o dinheiro que imaginava necessário para trazer a famosa
casaca para casa. Daria de presente ao marido na esperança não de o agasalho
bento atrair alguma virtude, mas servir de inspiração. Enquanto caminhava
na direção do edifício onde seria o leilão, Margô imaginava Joabe se abotoando.
Aquecido, ele guardaria, no inverno, as virtudes que lhe faltaram no verão.
O
arremate não foi complicado. Ninguém havia juntado tanto dinheiro. Antes do
martelo bater a terceira vez, a única herança do monge passou para as mãos de
Margô.
Ao
chegar em casa, Margô esparramou a blusa sobre uma mesa. Alisou as mangas com o
cuidado dos padres quando esticaram o Sudário na lâmina de vidro que o preserva
até hoje. No bolso do lado direito, achou uma folha de papel dobrada três
vezes. Os vincos estavam apertados em cada dobra. Atônita, Margô leu a única
escrita que Bertoldo deixou:
Sinto
falta de algo que todos os compêndios ainda não conseguiram decifrar. Tenho
sede de uma água que nem sei bem se existe ou como sacia minha alma. Meus sonhos, agora com idade, sei: eles nunca se
cumprirão. Quero um país que só visitei em viagens para dentro do meu coração –
um país tão próximo e, ao mesmo tempo, tão impossível. Escrevo. Medito.
Tranco-me. Enfurnado em minha própria cela, oro. Minhas preces não passam na
maioria das vezes de silêncios dirigidos aos confins do universo. Medito. As
minhas meditações esfumaçam a linha que separa o meu presente do porvir. O que
fazer? Sei, não há resposta. Resta-me o doloroso e fascinante dever de
continuar. Amedrontado e poucas vezes afoito, sigo.
Margô
escureceu a blusa marrom com suas lágrimas. Ela não chorava por Bertoldo.
Chorava por si mesma. As palavras que acabara de ler eram na verdade o clamor
de seu próprio coração
Soli Deo Gloria
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