Ricardo Gondim
Nascemos entre a bigorna e o martelo. A noção de
perigo nos acompanha pela vida e não demoramos perceber: somos mortais. De
repente, damos conta: o oceano onde nadamos não tem porto. Sabedores do fim,
cansados de nadar contra a maré, provamos um fel chamado angústia.
Não há como fugir, é o medo existencial que faz
nascer a angústia. Dela vem o choro que nunca desengasga. A angústia é mãe de
pequenos surtos depressivos – que jamais entristecem totalmente. Angústia dói
em todas as línguas. E lateja feito dor de dente.
A vida não se deixa domesticar. Não há unguento que
cure o sofrimento de existir. E depois de toda obra e toda aventura, sobra a
única certeza: a guilhotina descerá no pescoço de todos.
Não se extirpa a angústia dos ossos, da pele, do coração.
Não existe antídoto para sua peçonha. André Comte-Sponville afirmou que “somos
fracos no mundo, e mortais na vida. Expostos a todos os medos. Um corpo para as
feridas, ou para as doenças, uma alma para as mágoas, e ambos prometidos à
morte somente… Ficaríamos angustiados por menos”.
A angústia nunca se deixa descobrir. É assintomática.
Oxigênio algum resolve quando falta fôlego na alma. Inexistem saídas. Tudo
termina em tragédia. Fernando Pessoa constatou sobrarem pratos na mesa. Era dia
do seu aniversário e, triste, disse ser “sobrevivente a mim-mesmo como um
fósforo frio….”.
Todos vestirão luto um dia.
Pascal comparou o sentimento de angústia a homens
acorrentados: “Todos condenados à morte, sendo todos os dias uns deles
degolados à vista dos outros. Aqueles que restam veem sua própria condição
naquela de seus semelhantes, e, olhando-se uns aos outros com dor e sem
esperança, esperam sua vez”. No seu pessimismo, resta enlouquecer ou “ se
divertir”. Numa equação shakespeariana: fuga ou loucura, eis a questão.
A modernidade tecnológica também se apropriou do
jargão antigo:“Consumamos, consumamos, porque amanhã morreremos”. Nenhum país
incorporou tanto essa ideia quanto os Estados Unidos. Lá virou o paraíso do
consumo, a nova Roma para onde bárbaros desejam emigrar. Na América, rodam duas
vezes mais automóveis per capita que o restante da humanidade. Gasta-se mais
energia com ar condicionado que toda a produção energética da China. O
desembolso com sapatos tênis fica em torno de doze bilhões de dólares. Mas, o
consumismo desenfreado atual deixa as pessoas mais contentes ou felizes do que
em 1954? Brinquedos caros ou baratos são impotentes para tirar a vontade de
chorar.
Onde está a fonte da juventude eterna? A humanidade
conseguiu adiar o dia fatídico. Os avanços da medicina se tornaram
espantosos. Com o culto ao corpo, países ricos refizeram padrões estéticos. A
beleza atual é bem diferente da medieval. A expectativa de vida aumentou mais
nos últimos quarenta anos do que nos 4.000 anos precedentes. Cresceu de 53 anos
– incluindo os países mais miseráveis – em 1960 para 67 anos em 2005. Uma
criança nascida hoje viverá em média 122 mil horas ou 5,83 mil dias a mais do
que uma, nascida há quatro décadas.
Um desdobramento negativo desses avanços é que as
pessoas foram condenadas a passar mais tempo convivendo com a realidade.
A longevidade também faz crescer a angústia.
O mesmo soluço que afligiu filósofos gregos e
salmistas judaicos soluça hoje. Mudaram os rótulos. Continuam as fobias do
passado. O avanço da psicologia e o progresso da espiritualidade não desmentem
que viver é um perigo. A força da angústia resiste a comprimidos e todas as
alquimias.
Não sobram muitas escolhas. Jogados ao mundo,
resta-nos aprender a viver.
O judeu itinerante, Jesus de Nazaré, falou coisas
agradáveis, sem, contudo, evitar as antipáticas. Sua mensagem convidou
homens e mulheres a considerarem a vida como rara e imprescindível. Ao
referir-se à verdade, ensinou a necessidade de enfrentar a realidade. Ele
deixou as pessoas decidirem se queriam ou não lidar com a angústia. Não
receitou fórmulas fáceis de como desatar os nós da alma. Seguidores e ouvintes
deviam aprender a usar a força negativa da angústia em favor da
felicidade. E não basta um estado transitório – estar alegre, feliz. A vida é
um convite a ser.
Jesus acreditou que viver é somar pequenas
decisões; é juntar experiências boas e más na construção do ser. Fiel à
tradição do Eclesiastes, ele viu que só encontramos algum sentido mínimo de
existir ao somarmos choros e risos, desejos e realizações, frustrações e
sonhos.
Ninguém precisa exorcizar a angústia, que, assumida,
gera sede de transcendência. A vida carece também de um lado sombrio para ser
eterna. Além do mais, a angústia garantiu a sobrevivência da espécie. Só os
angustiados buscam companhia. A angústia fez com que os primeiros seres humanos
desejassem viver em sociedade. Ao notarem que eram frágeis e iguais no
sofrimento, deram as mãos.
O grito que se ouviu no Calvário – Eli, Eli,
lamá sabactini?, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” –
tornou-se o grito de toda a humanidade. Os lábios de Cristo passaram a
representar os negros que morreram em navios fétidos, as mulheres perseguidas
na Inquisição, as crianças que se exauriram em trabalho escravo, os curdos que
nunca tiveram pátria. O filho de Deus desentranhou a sua angústia, que ressoou
pelos quatro cantos da terra, e passou a ser o grito de todos. Cravados com ele
no madeiro da solidão, seguimos o seu exemplo e encaramos qualquer sina – Ele é
autor e consumador da fé.
Soli Deo Gloria
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