O Barcelona se classificou
merecidamente para quinta semifinal consecutiva da Liga dos Campeões da Europa.
O time vem apresentando exibições vibrantes e jogando com beleza e
plasticidade. Já é praticamente consenso, entre os que realmente apreciam arte,
que esse time não apenas joga futebol; faz esculturas com a bola, faz pinturas
com a armação tática e faz poesia em cada partida. Há um casamento perfeito
entre esporte e elegância, entre arte e maestria. O Barcelona já é visto, pela
crônica esportiva, como o melhor time de clube da história do futebol, e já
está alcançando status suficiente para rivalizar com os melhores combinados de
seleção.
O que se espera é que o Barcelona,
com uma história de sucesso como essa, dissemine apenas admiração, encantamento
e simpatia mundo afora. Mas não é exatamente o que vem acontecendo por essas
bandas daqui. Enquanto a torcida pelo Barça só faz aumentar mundo a
fora, independentemente das preferências por clubes locais, nas terras
tupiniquins cresce uma onda insana de antipatização. É grande, por aqui, o
número de (des)torcedores que querem ver o tropeço do time catalão, e de
preferência para um timezinho sem qualquer expressão. Há por aqui uma legião de
pessoas que não suportam o sucesso, a beleza, a competência de outro futebol
que não seja brasileiro. Como o nosso futebol está numa fase ruim, em que
desaprendeu a elegância e a plasticidade, aí é que a coisa fica pior; aí é que
não suportamos mesmo ver o Barcelona jogar. Por que tanta antipatia? Não
pretendo aprofundar essa questão. Quero apenas usar esse sentimento de
antipatia pelo Barcelona como ilustração de um mal que corrói a alma: a inveja[1].
Torcer contra quem é bem sucedido,
bonito, rico etc. pode indicar uma predileção para a mediocridade e uma
incapacidade de lidar (reconhecer, apreciar e aprender) com a grandeza do
outro. Quando o sucesso alheio (especialmente de que o
alcançou legitimamente) começa incomodar é sinal de que a inveja está se
aninhando na alma.
A inveja é um vício complicado e
difícil de ser combatido por diversas razões. Quero neste artigo traçar algumas
linhas sobre a anatomia da inveja. Só quando a desvendamos é que nos tornamos
capazes de lhe fazer uma oposição consistente, de minar suas bases. Façamos o
exercício de descortiná-la para, então, podermos combatê-la. Vamos a alguns
pontos importantes[2].
A inveja é mal vista, logo tem de ser
negada. Talvez a inveja seja o vício mais difamado e rejeitado. Não é
bonito ser invejoso. Outros vícios como a raiva, o orgulho etc. são mais
higienizados e aceitos socialmente. Não é tão feio assim ser esquentado. Também
não causa tanta vergonha ser orgulhoso. Quem projeta orgulho não arranha
drasticamente sua própria imagem; talvez até ganhe com isso. Mas quando se fala
em inveja, a coisa é bem diferente. Ela é um vício sujo, humilhante e
degradante. Ninguém gosta de se mostrar invejoso. Praticamente todas as pessoas
reagem com furor quando são identificadas como invejosas. Toda essa
representação negativa da inveja só contribui para que ela exista na
clandestinidade da alma. Ela é enxotada para os porões e só sai de lá
disfarçada. Em boa parte dos casos, sob um disfarce tão bom que nem o invejoso
percebe.
A inveja não oferece ganho real e nem
gratificação duradoura. A inveja não melhora a vida do invejoso e nem
lhe dá prazer. Antes, lhe cria uma série de problemas relacionais, levando-o a
se corroer solitariamente. O invejoso vive possuído por uma raiva insana
dos outros (porque são prósperos) e de si mesmo (porque é medíocre). A inveja
nunca se sacia porque não age para fora. Diferentemente da raiva, que exige uma
ação externa para se locupletar, a inveja, por ser preguiçosa e covarde, só age
internamente; só ataca o mais fraco, o próprio invejoso. Ela sempre quer ver
mais desgraça na vida do outro, mas é impotente para fazer isso acontecer. Ela
sempre se frustra: ou porque o outro só prospera ou porque a desgraça que
sobreveio é pequena demais aos seus olhos.
A inveja subverte a fonte da
felicidade. Em vez se basear no que é bom, a inveja arma sua estrutura sobre o
que é mau. Ambrose Bierce apresenta, no Devil’s Dictionary[3](Dicionário
do Diabo), uma definição de felicidade que se ajusta perfeitamente à fisiologia
da inveja:
“Felicidade – uma sensação agradável
proveniente da contemplação da miséria alheia”.
A inveja se fundamenta no infortúnio,
na desgraça, na miséria, e extrai daí fiapos de felicidade para o invejoso.
Ambrose Bierce deixou de colocar em sua definição que essa sensação de
felicidade é absurdamente efêmera e só se repete quando a desgraça alheia se
aprofunda. A inveja constrói, então, uma estrutura de felicidade baseada na
voracidade e insaciabilidade, tornando o invejoso viciado em desejo de
desgraça. Como esse desejo nunca é plenamente satisfeito, o invejoso nunca
experimenta a felicidade, mas apenas fragmentos extáticos de um prazer mórbido.
A felicidade não se instala e nem se mantém quando o mal é o fundamento. Logo,
todo invejoso é profundamente infeliz e morbidamente masoquista.
Termino este artigo com uma história muito conhecida. Eu a reescrevi e
adaptei aos propósitos deste artigo:
Dois homens foram convidados para uma audiência com o rei. Não foi
por coincidência que o rei convocou justamente aqueles dois homens. Eles tinham
vícios que os tornavam próximos e distantes ao mesmo tempo. Um era ganancioso e
o outro, invejoso.
Os dois convidados chegam ao local do encontro. Estão meio apreensivos,
um pouco amedrontados. Sentem-se interiormente culpados, embora nenhum deles se
considere invejoso ou ganancioso. Eles tinham visto no edital de convocação
que cada um teria direito a um pedido, mas a essa altura não esperavam coisa
boa. Talvez o rei lhes desse o direito de pedir um castigo mais brando ou coisa
parecida.
No horário marcado, os dois súditos são chamados à sala real. Começa a
audiência. O rei, vendo o terror estampado no rosto de cada um, diz:
_ Não tenham medo desse encontro. Hoje é um dia de sorte, não de
infortúnio. Vocês foram convidados para receberem um presente. Peçam que
quiserem e lhes darei.
A fala do rei os aliviou. De imediato cada um começou a fazer planos
para o pedido, mas em silêncio. Um dos convidados esboçou fazer uma pergunta
sobre haver ou não alguma condição que governasse o pedido. O rei de imediato o
interrompeu:
_ Só há uma condição. Apenas um de vocês poderá fazer o pedido. Este
receberá o que pedir e o outro receberá o que for pedido em dobro. Não há
nenhuma regra que estabeleça quem deve fazer o pedido. Isso será decidido entre
vocês.
Logo se instalou um drama na mente de cada um. O ganancioso pensou:
_ Se eu fizer o pedido vou ganhar menos que eu poderia ganhar. Devo
convencer meu companheiro a fazer o pedido.
O invejoso, por sua vez, pensou:
_ Se eu fizer o pedido ele vai ganhar o dobro. Eu não suportaria vê-lo
ganhar mais que eu. Devo convencê-lo a fazer o pedido.
Eles discutiram por alguns minutos, até que o ganancioso convenceu o
invejoso a fazer o pedido. Este pensou consigo:
_ Preciso encontrar uma forma de fazer com que o meu pedido seja pior
para ele. Mas é difícil. O rei foi muito sábio.
Num momento de profunda iluminação, sua inveja lhe forneceu uma ideia
masoquista, mas suficiente para lhe satisfazer a compulsão por desgraça alheia.
Antes de lançar o pedido ao rei, o invejoso se certificou da regra:
_ Qualquer coisa que eu pedir meu companheiro receberá em dobro? É isso
mesmo, majestade? Qualquer coisa, mesmo?
_ Sim, disse o rei.
O invejou então pediu:
_ Quero que arranque um dos meus olhos.
Moral da história: a inveja não se
importa com o sofrimento de quem lhe dá morada; o que ela quer mesmo é ver
o infortúnio do outro. A inveja tem pavor de bem estar. Ela leva o
invejoso a condições degradantes só para manter a obsessão por desgraça
alheia. A inveja compele o invejoso à autoperversidade para se manter momentânea
e morbidamente feliz.
[1] Me motivei a
escrever este artigo depois de ler a crônica “A inveja é uma m...” de
André Rizek (@andrizek), disponível em: http://sportv.globo.com/platb/andrerizek/2012/04/04/a-inveja-e-uma-m/.
Devo a ele parte das ideias desenvolvidas nesses dois primeiros parágrafos.
[2] Parte das
ideias desenvolvidas aqui foi inspirada em: Os Guinness. Sete pecados
capitais.São Paulo: Shedd Publicações, 2006.
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