O julgamento do pastor Estêvão
Era um domingo muito tenso na reunião da
Igreja. Ao invés de estarem todos se confraternizando e louvando a Deus, os
membros da congregação compareceram ali para acompanhar passivamente o conselho
eclesiástico decidir pela expulsão do pastor Estêvão.
O pastor Estêvão era um homem muito popular
e querido pelos evangélicos, católicos e até por pessoas da cidade que não
seguiam a nenhuma religião. Promovia diversas atividades sociais, bem como
organizava protestos contra os políticos corruptos, o que incomodava bastante
os interesses dos poderosos e dos líderes eclesiásticos locais. Contudo, nada
podia ser dito contra a sua reta conduta. Ele apenas era visto com desconfiança
por sua posição teológica liberal pelos que tinham mais apego doutrinário à
ortodoxia. Só que, desta vez, o ousado pastor tinha deixado perplexos os
crentes conservadores daquele lugar. Na semana anterior à reunião, Estêvão fora
denunciado ao bispo presidente do conselho por ter celebrado uma união
homo-afetiva entre duas lésbicas.
Para que o estatuto da igreja fosse
cumprido, uma assembleia geral precisou ser convocada e o pastor Estêvão teria
que ser ouvido. E foi o que prontamente fizeram os principais conselheiros
porque aquela era a grande chance que tinham para afastar da liderança o irmão
herege e perturbador do sistema econômico e social.
Levantando-se no meio de todos, após ter
cumprimentado os irmãos com a "paz do Senhor" e explicado porque
estavam todos reunidos ali, o bispo Ananias passou a inquirir o réu:
- “É verdade isto que andam falando a seu
respeito? Tem quinze minutos para se defender”
A esta pergunta respondeu o pastor Estêvão,
deixando sua cadeira e tomando o microfone:
- “Meus queridos irmãos e irmãs. Por favor,
sejam capazes de me ouvir. Como ensino aos meus alunos do seminário, o glorioso
Deus inspirou os autores da Bíblia afim de orientarem o povo de Israel na sua
caminhada histórica. Porém, todos eles foram homens de carne e osso, iguais a
mim e a vocês, cujos corações sentiram-se motivados para escrever coisas que,
conforme seus valores, consideravam serem as corretas. E deste modo, de acordo
com a necessidade do povo, ensinaram preceitos direcionados à realidade social
da época, fazendo tudo com sensibilidade, mas sempre dentro de seus valores
culturais e pessoais. Ao terem testemunhado diante da nação israelita, seus
discursos foram atualizados em conformidade com o novo contexto histórico da
época dos escribas redatores dos textos bíblicos nas gerações seguintes. E foi
desta maneira que surgiram os escritos das partes da Bíblia que a cristandade
chama de Antigo Testamento e o mesmo se aplica ao Novo Testamento.”
Até aí muitos ouviam aquelas palavras com
alguma admiração. Outros, porém mais versados na doutrina religiosa, levantavam
desconfiança em seus corações. Só que a grande maioria mal conseguia acompanhar
o que estava sendo discursado. Mas assim mesmo o pastor Estêvão prosseguiu:
- “Um dia, veio ao mundo um homem chamado
Jesus da descendência do rei Davi e do patriarca Abraão, como muitos outros
judeus na sua época. Ele começou sua atividade ministerial andando entre os
pobres e pregava sobre o Reino de Deus e a prática do amor. Em volta dele,
juntaram-se pessoas de todos os tipos: ladrões, prostitutas, coletores de
impostos, leprosos e toda a ralé do Galil. E creio que até muitos homossexuais
deveriam segui-lo também, apesar deste detalhe não ter ficado registrado nos
evangelhos oficiais e nem nos apócrifos. Porém, o que importava era que Jesus
não condenava a ninguém pelo seu modo de ser ou falhas de caráter. Ele aceitava
o outro incondicionalmente! Certa vez absolveu uma mulher adúltera que iria ser
apedrejada dizendo aos seus acusadores que atirasse a primeira pedra quem nunca
pecou. Em outro episódio, quando seus discípulos foram acusados por alguns religiosos
de profanarem o sábado, Jesus lembrou aqueles fariseus provincianos do que Davi
fizera na vez em que seu bando precisava urgentemente de comida, pelo que fora
ao sacerdote Abiatar pedir que fossem dados os pães exclusivos do santuário
para a satisfação de uma necessidade vital. E isto Jesus disse-lhes para
mostrar que o direito à vida está acima de qualquer lei porque antes de tudo é
preciso cuidar da sobrevivência e do bem estar do seu próximo.”
Neste momento, em que membros do conselho
eclesiástico estavam prontos para contra-argumentarem e pedirem uma parte na
palavra, o pastor Estêvão, ao perceber que novamente iria encarar uma discussão
teológica inútil, resolveu propositalmente radicalizar o seu discurso:
- “Agora ouçam, ó homens egolátricos,
insensíveis para ouvir e meditar nas coisas espirituais, vocês sempre resistem
ao vento evolutivo da história. Assim como aqueles fariseus medíocres e
invejosos do interior da Galileia teriam perseguido a Jesus, vocês fazem a
mesma coisa. Pois como vou negar a um homossexual nascido nesta condição o
direito de ter um relacionamento afetivo com alguém com quem possa se
relacionar intimamente? Que poder tem uma meia dúzia de versículos de uma
Bíblia escrita por homens para impedir duas pessoas do mesmo sexo de serem
felizes da única maneira que elas conseguem ser? Mas se os evangelhos contam
que os religiosos da época de Jesus teriam tramado suas ciladas contra ele,
vocês que se consideram detentores das tradições cristãs e pensam serem donos
de Deus estão praticando o mesmo pecado. Vocês cujos ancestrais espirituais
receberam as boas novas pelo testemunho apostólico e não guardaram a sua
essência!”
Quando ouviram isto, os conselheiros da
igreja ficaram furiosos, taparam os ouvidos e começaram a ranger os dentes
contra o pastor Estêvão, clamando:
- “Herege! Herege!”
Já outros chamavam-no de “ateu”, “pecador”,
“pederasta” e até de “pedófilo”. Porém, mesmo em meio aos gritos furiosos e
irracionais das pessoas presentes, eis que, naquele momento, o pastor Estêvão
ainda conseguiu dizer suas últimas palavras usando o microfone da igreja:
- “Quando olho para o céu, sinto como se
Jesus, sentado do lado do Pai, estivesse de pé encorajando-me a continuar
levando estas boas-novas da inclusão e ministrando a Santa Ceia aos nossos
irmãos gays e lésbicas.”
Com a aprovação do bispo, um jovem chamado
Saulo, estudante do seminário teológico e que tinha um blogue sobre apologética
cristã na internet, resolveu intervir, desligando primeiramente o microfone que
estava nas mãos do pastor Estêvão.
Virgem, reprimido sexualmente, sem nunca
ter namorado e se considerando zeloso das tradições dos evangélicos, o rapaz
fazia de tudo para agradar o bispo que também era o reitor da faculdade.
Ambicionava algum dia ocupar o lugar de Estêvão de depois de Ananias, após se
formar.
Sem nenhum respeito pelo pastor e
professor, Saulo chegou por detrás do seu mestre, agarrou-o com violência e o
colocou à força pra fora do templo:
- “Seu blasfemo e enganador! Fora da casa
de Deus! É por causa de falsos irmãos como você que o nome de Cristo é
ridicularizado entre os ímpios. Saia daqui!”
Seguindo Saulo, muios conselheiros ali
presentes continuaram clamando contra o pastor Estêvão. Uns tentaram até
exorcisá-lo. E, quando chegaram na porta da igreja, ele foi empurrado escada
abaixo. Porém, ainda disse:
- "Senhor, perdoa-os porque esses
homens não compreendem o que estão fazendo."
Ainda naquele dia, Saulo liderou uma
manifestação de evangélicos e católicos fundamentalistas pelas ruas da cidade
afim de protestarem contra o homossexualismo e o casamento gay. E, no meio dos
religiosos, estavam também uns neonazistas e muitos machistas homofóbicos
infiltrados.
Quanto ao pastor Estêvão ele foi tratado
como se estivesse morto pela comunidade eclesiástica local. Os evangélicos
moradores da cidade passaram a não mais convidá-lo para entrar nas suas casas.
Nenhum outro pastor permitiu mais que
Estêvão pregasse em púlpito e houve até gente que deixou de cumprimentá-lo na
rua virando a cara, além de que a faculdade teológica dispensou-o de suas
funções. Contudo, alguns homens e mulheres verdadeiramente piedosos
aproximaram-se de sua pessoa e juntos lamentaram por causa da ignorância do
povo.
Rodrigo Ancora da Luz