VICTOR ORELLANA "Sou pastor e sou gay" (entrevista a revista época)
Teólogo diz que há assédio nas igrejas e que parte do preconceito contra homossexuais se deve a traduções erradas da Bíblia
A Igreja Metodista está entre as mais tradicionais denominações protestantes. A Assembléia de Deus é famosa como uma das mais rígidas - muitos pastores ainda recomendam aos fiéis que não assistam à televisão e às mulheres que não usem calças para não ressaltar os quadris. O chileno Victor Ricardo Soto Orellana, de 31 anos, foi criado numa família metodista em São Paulo e ordenado pastor na Assembléia de Deus. Formado em teologia e pós-graduado em ciência e religião, já deu aula em três seminários. O que o diferencia da grande maioria dos religiosos é que ele é gay, e admite isso publicamente. Ainda, contesta as interpretações mais difundidas sobre o texto bíblico, que, em tese, condenam o homossexualismo. Polêmico, ele afastou-se recentemente da Assembléia para fundar sua própria igreja evangélica, a Acalanto. Depois de um culto, Orellana concedeu a ÉPOCA a seguinte entrevista.
ÉPOCA - Por que falar publicamente sobre sua homossexualidade na condição de pastor evangélico?
Pastor Victor Orellana - Porque é um assunto velado dentro das igrejas e, por causa disso, ignorância e preconceitos são perpetuados. É necessário que o assunto seja debatido em toda a sociedade. O homossexual não é alguém que mora longe ou está do outro lado da rua. Ele pode ser um amigo nosso, um irmão ou um filho. Quanto mais conhecimento existir sobre o tema, menos sofrimento haverá para todas as partes envolvidas.
ÉPOCA - A homossexualidade e a Bíblia não são incompatíveis?
Orellana - De maneira alguma. Os homossexuais têm dificuldade de se ver aceitos por Deus porque as pessoas dentro das igrejas são preconceituosas. Mesmo os homossexuais religiosos têm preconceito. Muitos jovens entram em conflito porque pensam em exercer a espiritualidade cristã e as igrejas os impedem. São espezinhados, excluídos ou humilhados. Penso que a igreja não pode ser parcial nisso. Não pode escolher alguns e deixar outros de fora de seu rebanho. Ela é a representante de Deus na Terra e deve acolher a todos. Cristo jamais lançou fora ninguém, ele tem amor incondicional. Eu pessoalmente já passei por preconceitos quando fui ordenado pastor. Disseram-me que eu estava errado, em pecado.
ÉPOCA - Chegou a acreditar nisso?
Orellana - Nasci numa família evangélica. À medida que ia crescendo, maior era meu encontro com a fé. Entrei na Assembléia de Deus e no seminário para seguir o que senti ser um chamado de Cristo. Ao mesmo tempo, fui tomando consciência de minha homossexualidade. Desde criança tinha sentimentos por homens, mas os reprimia. Isso mudou quando estava na Assembléia e um dirigente de minha congregação, um homem mais velho, me assediou. Pensei: 'Porque eu me culpo a ponto de me anular, enquanto dentro da igreja há esse tipo de hipocrisia?' Decidi aceitar minha orientação homossexual.
ÉPOCA - Contou à família?
Orellana - Minha família sabe há sete anos. O rosto fechado veio da minha mãe. Toda mãe espera muito dos filhos. E se você se nega a cumprir as metas que ela planejou é como se destruísse seus sonhos. Mas sou existencialista, creio que cada um tem a própria vida para viver. Meus irmãos me compreenderam melhor.
ÉPOCA - Como foi descobrir-se homossexual na Assembléia de Deus, uma das igrejas mais rígidas?
Orellana - Foi muito difícil. Eles acham que todas as pessoas nascem com uma orientação heterossexual dada por Deus mas alguns se pervertem. Acreditam que o ser humano não é, em sua essência, homossexual, mas se homossexualiza. Isso é ignorar a posição da ciência, que descreve a orientação sexual como algo inerente ao indivíduo e a sua personalidade. Muitos homossexuais crescem nesse ambiente religioso e crêem que fazem algo de errado. Acham que são perniciosos e buscam as igrejas para 'se libertar', anulando suas expectativas pessoais e condicionando-se ao modelo heterossexual. Os ex-gays, ou libertos, como eles se denominam, se condicionam. Mas, com toda a fé que têm, não conseguem sentir desejo por alguém do sexo oposto. Vivem como párias, excluem o desejo de sua vida. |
ÉPOCA - O senhor testemunhou algum processo dessa suposta cura? Orellana - Enquanto estava na Assembléia de Deus, vi testemunhos nos quais as pessoas diziam que Jesus as havia curado. Nos cultos, há muitos aplausos, 'glória a Deus' e 'aleluia'. Essas pessoas aderem sinceramente à fé. E, como a igreja lhes pede que renunciem ao pecado, elas acham que Deus quer isso mesmo. Assim, vão contra a própria natureza e buscam relacionamento com alguém do sexo oposto. Conheci fiéis que se casaram e descasaram bem cedo porque viram que a situação não é fácil de administrar. Mas os grupos que falavam em 'cura' dos homossexuais estão diminuindo, graças ao maior esclarecimento, que levou a mudanças no código social. As igrejas estão mudando o tom agressivo contra os gays. Agora há grupos que se denominam de auto-ajuda, não de libertação ou cura. A sexualidade é coisa inerente a cada um. Lutar contra isso é como lutar contra a cor dos olhos.
ÉPOCA - A Igreja Católica perdoa os homossexuais, mas sugere que eles vivam em celibato. Como o senhor vê essa posição?
Orellana - A Igreja Católica ao menos reconhece a existência de homossexuais. Os evangélicos ainda crêem que as pessoas nascem heterossexuais mas se tornam homossexuais. Na verdade, ninguém escolhe a orientação sexual que tem.
ÉPOCA - O senhor tem um namorado, um parceiro?
Orellana - Já tive parceiros e um relacionamento estável. Mas, no momento, estou sozinho.
ÉPOCA - Freqüenta guetos homossexuais? Bares, boates, saunas?
Orellana - Vou a bares de vez em quando. Mas não freqüento saunas nem boates, ambientes em que se praticam a promiscuidade e o chamado sexo predatório. Vou a lugares nos quais encontro os amigos. Parte importante da vida é encontrar pessoas que pensam como a gente, que passam pelos mesmos problemas. Quero um cotidiano normal. Não quero viver em guetos, mas em lugares nos quais possa demonstrar afeto sem sofrer preconceito ou ser expulso.
ÉPOCA - O senhor acaba de fundar a própria igreja. Pretende celebrar casamentos de homossexuais?
Orellana - Sim. Antes de fundar a Acalanto, já casei dois amigos que me pediram a bênção. Acho positiva a parceria civil registrada porque ela reconhece uma relação verdadeira. E está na Constituição que o Estado não pode discriminar ninguém. Como o governo só confere direitos previdenciários a casais heterossexuais? Onde está a lógica disso?
ÉPOCA - A Bíblia tem passagens que condenam explicitamente o homossexualismo. Por exemplo: 'Não te deitarás com varão como se fosse mulher; é abominação' (Levítico, 18:22).
Orellana - O termo toevah, traduzido por 'abominação', indica na verdade uma impureza ritual, não algo intrinsecamente mau. Essa proibição está no mesmo nível do veto a comer camarão, ostra e carne de porco. A Lei de Moisés está repleta de conceitos arcaicos. Ela admite a poligamia, manda apedrejar até a morte homem e mulher adúlteros e ordena que o homem, mesmo se for casado, case com a mulher de seu falecido irmão quando ela ficar viúva. Ainda proíbe o uso de roupas com dois tipos de tecido e até mesmo misturar carne com leite - ou seja, bife à parmegiana era pecado. Essa lei contém uma irracionalidade que só poderia ser entendida no contexto em que foi escrita, séculos antes de Cristo. Ela visava exclusivamente ao povo judeu daquele tempo. Israel foi criada para ser uma nação com um código moral diferente do das outras nações, uma nação sacerdotal.
ÉPOCA - Mas, no Novo Testamento, o apóstolo Paulo diz que 'os injustos não herdarão o reino de Deus', incluindo na lista 'os efeminados e os sodomitas'. Critica também os homens que abandonam a mulher e se engajam em concupiscência com outros homens.
Orellana - Há um disparate da tradução, que se aproveitou de uma falsa equivalência entre os termos atuais e os que eram usados naquele tempo. Paulo criticava os romanos por sua libertinagem e chamava-os de 'doces' e 'macios', apenas. A palavra homossexual foi cunhada no fim do século XIX, e não tem nada a ver com o que se pensava no século I a respeito das relações entre homens. Paulo pensava em homens originalmente afeiçoados às mulheres, mas que se engajavam no pansexualismo romano, praticando a libertinagem em todas as suas formas. Paulo não tinha em mente o homossexual como se conhece atualmente, alguém que tem uma vida afetiva com uma pessoa do mesmo sexo. Portanto, não é correto transpor para os dias de hoje aquela advertência.
JOÃO LUIZ VIEIRA
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Victor R. S. Orellana, é professor, teólogo, bacharel em teologia pelo Instituto Betel e com pós-graduação “Latu-Sensu” pelo CLAP - São Paulo-SP, fundador da Igreja Acalanto e conferencista nacional sobre o tema “Homossexualidade e Religião”
Fonte: http://omundodaanja.blogspot.com/
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