O ódio primeiro: contra as mulheres
A organização aparece na história como característica fundamental e inseparável do universo e do próprio Deus. A ordem das coisas na terra, demonstram as burocráticas enumerações de Gênesis, reflete o planejamento da mente divina no céu. Dito de outra forma, as coisas são precisamente como deveriam ser.
Ao longo dos séculos, na mente da esmagadora maioria dos cristãos, esse estado inicial da criação tem representado uma espécie de intocável Idade do Ouro. Segundo esse modo de ver as coisas, Gênesis 1 e 2 estabelecem o conjunto de circunstâncias que encapsula a essência do que o cristianismo deve defender. Aqui estão, afinal de contas, a soberania divina, a singularidade da humanidade em relação às demais criaturas, a instituição da família e do casamento, o direito de domínio do ser humano sobre a natureza. O mundo como Deus o criou em Gênesis estaria dessa forma demarcado por “ordens da criação”, categorias muito precisas e muito fixas que cabe aos puros de coração defender, porque violá-las é devolver o mundo ao desfigurante e degradante caos que precedeu a iniciativa ordenatória de Deus.
Não mexa no meu queijo
É o argumento das “ordens da criação” que, ainda hoje, impede que mulheres sejam ordenadas ao sacerdócio ou ao ministério em igrejas cristãs de todas as estirpes. Em 1969, por exemplo, o sínodo da igreja luterana do Missouri legislou que “diante das declarações da Escritura que a mulher não deve ensinar ou exercer autoridade sobre o homem, entendemos que mulheres não devem assumir cargos pastorais ou qualquer outra posição que viole de alguma forma a ordem da criação”.
Afinal de contas, deixa claro o Apóstolo, é coisa vergonhosa que uma esposa fale na igreja; a própria Lei afirma que as mulheres devem ser submissas; Adão precedeu a mulher na ordem cronológica da criação; o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem; o marido é a cabeça da esposa; a mulher veio do homem, e não o homem da mulher; o homem não foi enganado, mas a mulher deixou-se enganar pela serpente. A conclusão é clara: na hierarquia ideal da criação, que não cabe ao ser humano querer violar, a mulher é inerentemente subordinada ao homem. Almejar uma posição de igualdade funcional é arrogância e rebelião; é lutar contra as ordens da criação, ou seja, contra a integridade da tessitura mais essencial do universo.
O relatório do mesmo sínodo faz os seguintes esclarecimentos adicionais: “A ordem da redenção não deve viciar o relacionamento apropriado entre mulheres e homens estabelecido na ordem da criação”. “A unicidade do homem e da mulher em Cristo não apaga a distinção estabelecida na criação”. “A subordinação da mulher ao homem na ordem da criação é uma relação funcional dada pelo criador, que escolheu estruturar a existência em determinadas linhas”. “O casamento e o estado pertencem às ordens da criação”. “Deus é o criador de certos relacionamentos básicos que impedem a vida e a sociedade de degenerarem em anarquia”. “Paulo não queria que as mulheres transtornassem a hierarquia de funções estabelecida na criação, especialmente logo após a queda”. “A subordinação da esposa ao marido é parte da ordem da criação”. “A convicção do apóstolo é que a igreja não deve minar, mas santificar as ordens da criação”. “Paulo está decidido a defender a instituição do matrimônio como pertencente às ordens da criação, em que a renovação não é alcançada por meio de desordem e ruptura, mas pela observância e pela santificação da prática de autoridade por parte do marido e de submissão por parte da esposa”.
Assim, ao longo de dois mil anos de civilização cristã, as mulheres foram silenciadas e reprimidas, ao mesmo tempo em que eram acusadas (via Eva, de quem teriam herdado suas fraquezas) de serem culpadas por virtualmente todos os males que assolam a humanidade; foram perseguidas como bruxas, torturadas sem dó, separadas de suas famílias e queimadas publicamente; tiveram suas vidas legisladas, suas opiniões enterradas e direitos cerceados, mesmo nos nossos dias.
“Quem está pedindo o voto para as mulheres?”, quis saber Justin Fulton em 1869. “Os que amam a Deus e seguem a Cristo é que não são! A maior parte dos que reivindicam o voto para as mulheres repudiam a legislação do Céu e os prazeres domésticos, e deixam-se levar pela infidelidade e pela ruína”.
Ao longo dos séculos, na mente da esmagadora maioria dos cristãos, esse estado inicial da criação tem representado uma espécie de intocável Idade do Ouro. Segundo esse modo de ver as coisas, Gênesis 1 e 2 estabelecem o conjunto de circunstâncias que encapsula a essência do que o cristianismo deve defender. Aqui estão, afinal de contas, a soberania divina, a singularidade da humanidade em relação às demais criaturas, a instituição da família e do casamento, o direito de domínio do ser humano sobre a natureza. O mundo como Deus o criou em Gênesis estaria dessa forma demarcado por “ordens da criação”, categorias muito precisas e muito fixas que cabe aos puros de coração defender, porque violá-las é devolver o mundo ao desfigurante e degradante caos que precedeu a iniciativa ordenatória de Deus.
Não mexa no meu queijo
É o argumento das “ordens da criação” que, ainda hoje, impede que mulheres sejam ordenadas ao sacerdócio ou ao ministério em igrejas cristãs de todas as estirpes. Em 1969, por exemplo, o sínodo da igreja luterana do Missouri legislou que “diante das declarações da Escritura que a mulher não deve ensinar ou exercer autoridade sobre o homem, entendemos que mulheres não devem assumir cargos pastorais ou qualquer outra posição que viole de alguma forma a ordem da criação”.
Afinal de contas, deixa claro o Apóstolo, é coisa vergonhosa que uma esposa fale na igreja; a própria Lei afirma que as mulheres devem ser submissas; Adão precedeu a mulher na ordem cronológica da criação; o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem; o marido é a cabeça da esposa; a mulher veio do homem, e não o homem da mulher; o homem não foi enganado, mas a mulher deixou-se enganar pela serpente. A conclusão é clara: na hierarquia ideal da criação, que não cabe ao ser humano querer violar, a mulher é inerentemente subordinada ao homem. Almejar uma posição de igualdade funcional é arrogância e rebelião; é lutar contra as ordens da criação, ou seja, contra a integridade da tessitura mais essencial do universo.
O relatório do mesmo sínodo faz os seguintes esclarecimentos adicionais: “A ordem da redenção não deve viciar o relacionamento apropriado entre mulheres e homens estabelecido na ordem da criação”. “A unicidade do homem e da mulher em Cristo não apaga a distinção estabelecida na criação”. “A subordinação da mulher ao homem na ordem da criação é uma relação funcional dada pelo criador, que escolheu estruturar a existência em determinadas linhas”. “O casamento e o estado pertencem às ordens da criação”. “Deus é o criador de certos relacionamentos básicos que impedem a vida e a sociedade de degenerarem em anarquia”. “Paulo não queria que as mulheres transtornassem a hierarquia de funções estabelecida na criação, especialmente logo após a queda”. “A subordinação da esposa ao marido é parte da ordem da criação”. “A convicção do apóstolo é que a igreja não deve minar, mas santificar as ordens da criação”. “Paulo está decidido a defender a instituição do matrimônio como pertencente às ordens da criação, em que a renovação não é alcançada por meio de desordem e ruptura, mas pela observância e pela santificação da prática de autoridade por parte do marido e de submissão por parte da esposa”.
Assim, ao longo de dois mil anos de civilização cristã, as mulheres foram silenciadas e reprimidas, ao mesmo tempo em que eram acusadas (via Eva, de quem teriam herdado suas fraquezas) de serem culpadas por virtualmente todos os males que assolam a humanidade; foram perseguidas como bruxas, torturadas sem dó, separadas de suas famílias e queimadas publicamente; tiveram suas vidas legisladas, suas opiniões enterradas e direitos cerceados, mesmo nos nossos dias.
“Quem está pedindo o voto para as mulheres?”, quis saber Justin Fulton em 1869. “Os que amam a Deus e seguem a Cristo é que não são! A maior parte dos que reivindicam o voto para as mulheres repudiam a legislação do Céu e os prazeres domésticos, e deixam-se levar pela infidelidade e pela ruína”.
O ódio segundo: contra os negros
Aplacados pela lógica da "ordem da criação", os cristãos conviveram pacificamente, ao longo de dezoito séculos, com toda forma de escravidão e preconceito de raça. A supremacia dos brancos sobre todas as outras raças havia sido, afinal de contas, estabelecida diretamente por Deus. Os negros, em particular, eram tidos como descendentes de Cão, o filho amaldiçoado de Noé cujo filho Canaã fora condenado a ser "servo dos servos de seus irmãos".
Com essa desculpa, a divisão racial fendeu por séculos países como os Estados Unidos e a África do Sul, com a devida sanção de seus líderes cristãos. "A escravidão foi estabelecida por decreto do Deus Todo-Poderoso", explicou Jefferson Davis, presidente da Confederação. "Ela é sancionada pela Bíblia em ambos os testamentos, de Gênesis a Apocalipse. Tem existido em todas as épocas, sendo encontrada entre os povos da mais alta civilização e nas nações de maior destaque nas artes".
Ao longo da história os cristãos que ousaram discordar da supremacia da "ordem da criação" tiveram de lutar contra a corrente da interpretação estática das Escrituras. Afinal de contas, o próprio Novo Testamento não oferece uma palavra de condenação à escravidão; ao contrário, em muitas passagens parece sancioná-la sem encontrar na questão qualquer dilema moral. Era muito difícil para os abolicionistas justificar biblicamente sua posição, enquanto que os escravagistas tinham (e ainda têm) dúzias de versículos para acenar em seu favor. Dispor-se a lutar pela abolição era, em grande medida, dispor-se a lutar contra Deus e contra a Bíblia.
Da mesma forma, os que advogavam pelos direitos das mulheres tinham de procurar uma agulha no enorme palheiro patriarcal e sexista que é o texto bíblico. Para cada momento em que Jesus é amigo das mulheres, há dez em que Paulo nos lembra de que Eva é quem foi enganada pela serpente.
Os anabatistas foram os primeiros a criticar escravidão, logo seguidos pelos quacres e os menonitas, mas foi John Wesley quem deu verdadeira forma e credibilidade pública à posição abolicionista.
Influenciado por Barth, Dietrich Bonhoeffer passou questionar diante dos teólogos nazistas toda a validade da sua argumentação. Para Bonhoeffer, o argumento das ordens da criação é falho porque pode ser usado para justificar virtualmente qualquer estado de coisas, por mais injusto ou arbitrário que seja. Para ele, as ordens do mundo derivam seu valor não de si mesmas, mas de Cristo, que é a nova criação e portanto a nova referência para todas as coisas. "Qualquer ordem”, enfatiza ele, “pode ser dissolvida e deve ser dissolvida quando deixa de permitir a proclamação da revelação".
Em todos os casos, os proponentes da graça, quando dispuseram-se a combater o preconceito, o racismo, o sexismo, o totalitarismo, a escravidão e o abismo entre as classes, tiveram de abraçar a Bíblia sem abraçar-lhe a letra. Não começaram, porque não é possível, negando o sexismo dos patriarcas e discípulos ou a sanção bíblica da escravidão. Como os profetas antes deles, tiveram de apontar para um sentido mais profundo e mais abrangente da mensagem bíblica, uma mensagem transversal fundamentada não na forma dos mandamentos mas no exemplo de Jesus – e na pressuposição de que não há exemplo mais cristão a ser seguido.
Porque em Jesus, se você acredita nele, fica tudo de repente muito claro. Em Jesus, Deus, e portanto a criação, toma partido dos desamparados e dos marginalizados.
O que há em Jesus é, essencialmente, uma crítica pungente a toda espécie de dominação, mesmo a que é feita em nome de Deus. Sua postura é, portanto, uma ameaça a todo conforto e a todo estado de coisas. Agora ele está pendurado na cruz, mas com o tempo sua mensagem alcançará e redimirá a condição de todos os pequenos deste mundo. Agora fecham-no no túmulo, mas graças a ele haverá no futuro um momento em que escravos, pobres, mulheres, crianças e gente de todas as etnias não terão mais de se envergonhar da sua condição.
Com essa desculpa, a divisão racial fendeu por séculos países como os Estados Unidos e a África do Sul, com a devida sanção de seus líderes cristãos. "A escravidão foi estabelecida por decreto do Deus Todo-Poderoso", explicou Jefferson Davis, presidente da Confederação. "Ela é sancionada pela Bíblia em ambos os testamentos, de Gênesis a Apocalipse. Tem existido em todas as épocas, sendo encontrada entre os povos da mais alta civilização e nas nações de maior destaque nas artes".
Ao longo da história os cristãos que ousaram discordar da supremacia da "ordem da criação" tiveram de lutar contra a corrente da interpretação estática das Escrituras. Afinal de contas, o próprio Novo Testamento não oferece uma palavra de condenação à escravidão; ao contrário, em muitas passagens parece sancioná-la sem encontrar na questão qualquer dilema moral. Era muito difícil para os abolicionistas justificar biblicamente sua posição, enquanto que os escravagistas tinham (e ainda têm) dúzias de versículos para acenar em seu favor. Dispor-se a lutar pela abolição era, em grande medida, dispor-se a lutar contra Deus e contra a Bíblia.
Da mesma forma, os que advogavam pelos direitos das mulheres tinham de procurar uma agulha no enorme palheiro patriarcal e sexista que é o texto bíblico. Para cada momento em que Jesus é amigo das mulheres, há dez em que Paulo nos lembra de que Eva é quem foi enganada pela serpente.
Os anabatistas foram os primeiros a criticar escravidão, logo seguidos pelos quacres e os menonitas, mas foi John Wesley quem deu verdadeira forma e credibilidade pública à posição abolicionista.
Influenciado por Barth, Dietrich Bonhoeffer passou questionar diante dos teólogos nazistas toda a validade da sua argumentação. Para Bonhoeffer, o argumento das ordens da criação é falho porque pode ser usado para justificar virtualmente qualquer estado de coisas, por mais injusto ou arbitrário que seja. Para ele, as ordens do mundo derivam seu valor não de si mesmas, mas de Cristo, que é a nova criação e portanto a nova referência para todas as coisas. "Qualquer ordem”, enfatiza ele, “pode ser dissolvida e deve ser dissolvida quando deixa de permitir a proclamação da revelação".
Em todos os casos, os proponentes da graça, quando dispuseram-se a combater o preconceito, o racismo, o sexismo, o totalitarismo, a escravidão e o abismo entre as classes, tiveram de abraçar a Bíblia sem abraçar-lhe a letra. Não começaram, porque não é possível, negando o sexismo dos patriarcas e discípulos ou a sanção bíblica da escravidão. Como os profetas antes deles, tiveram de apontar para um sentido mais profundo e mais abrangente da mensagem bíblica, uma mensagem transversal fundamentada não na forma dos mandamentos mas no exemplo de Jesus – e na pressuposição de que não há exemplo mais cristão a ser seguido.
Porque em Jesus, se você acredita nele, fica tudo de repente muito claro. Em Jesus, Deus, e portanto a criação, toma partido dos desamparados e dos marginalizados.
O que há em Jesus é, essencialmente, uma crítica pungente a toda espécie de dominação, mesmo a que é feita em nome de Deus. Sua postura é, portanto, uma ameaça a todo conforto e a todo estado de coisas. Agora ele está pendurado na cruz, mas com o tempo sua mensagem alcançará e redimirá a condição de todos os pequenos deste mundo. Agora fecham-no no túmulo, mas graças a ele haverá no futuro um momento em que escravos, pobres, mulheres, crianças e gente de todas as etnias não terão mais de se envergonhar da sua condição.
O ódio terceiro e (por enquanto) último: contra os gays
Agora que você não pode mais contar piadas que ridicularizem os negros, agora que sua chefe ganha mais do que você, os preconceitos embasados no conceito das ordens da criação escolheram novos alvos.
São alvos mais fragéis e inesperados, e portanto mais adequados à predação neste momento da história. Hoje em dia, quando acenam com o argumento das ordens da criação, os cristãos estarão fatalmente condenando a conduta homossexual ou asseverando o seu direito de explorar os recursos do planeta.
Quando o relato de Gênesis deixa claro que Deus criou a mulher para o homem, o que pode haver de mais contrário à disposição inicial das coisas do que a união sexual entre pessoas do mesmo sexo? Se Jesus disse do divórcio que "no princípio não era assim", o que teria dito do casamento entre homossexuais?
Numa instância paralela, as ordens da criação são mencionadas pelos protestantes norte-americanos como credencial para explorarem até o sumo os recursos naturais da terra. Quem irá levantar-se para denunciar os abusos do homem contra a natureza, quando Gênesis assegura que Deus lhe conferiu pleno domínio sobre a terra? Como condenar os desmatamentos, a extinção escandalosa das espécies e o aquecimento global, quando a narrativa da criação esclarece que o homem foi criado para colocar o planeta sob sujeição?
Pelo que lêem em Gênesis, Deus não apenas deu ao homem carta branca para violentar a terra; deu-lhe essa missão.
A proliferação da união homossexual é vista como uma ameaça formidável à instituição da família – e a família é a ordem da criação por excelência, a unidade essencial que mantém no lugar os fundamentos do cosmos. Violar essa ordem primordial das coisas é tido como a forma mais abominável de rebelião; não apenas contra Deus (como se não bastasse), mas contra o próprio universo.
Como propõe Edward H. Schroeder em sua análise sobre a questão da ordenação feminina: se Deus permanece sendo o Deus Criador, como não concluir que as mudanças sociais ocorridas no tempo que nos separa de Paulo, mudanças que acabaram possibilitando o status igualitário da mulher, são obra do mesmo Criador? Como não concluir que foram mudanças sopradas na humanidade pelo exemplo singular e subversivo de Cristo? A obra do evangelho não estará derramando sobre o mundo seus inesperados desdobramentos?
“A consequência clara do evangelho,” observa Schroeder, “é que as ordens da criação são impermanentes. Com o tempo acabarão passando, juntamente com ‘o céu e a terra’”. A igreja não deve temer essa impermanência, porque “a própria igreja veio à existência através de um ato de violação.”
A escandalosa verdade é que a liga que sustenta o universo não é a família ou o casamento, mas a misericórdia, soprada por Deus e manifesta pelos homens. De um modo transversal o próprio Jesus demonstrou esse princípio quando explicou que “no princípio não era assim, mas o divórcio foi instituído por causa da dureza do coração de vocês”. Em outras palavras, ele está revelando que o divórcio foi instituído, incrivelmente, por uma vitória da misericórdia contra a ordem da criação. Está longe de ser uma solução ideal e não estava prevista na ordem original das coisas, mas é uma resposta da graça diante da irreversível complexidade da condição humana.
Desde a cruz a condição humana imergiu em muitas camadas adicionais de complexidade. Porém a misericórdia tem continuando a violar, de forma sistemática e sempre escandalosa, as ordens da criação. Quando a sua obra estará concluída? Talvez no momento em que cumprir-se por completo a profecia de Paulo, e em Cristo não houver mais judeu e grego, civilizado e bárbaro, escravo e livre, homem e mulher.
Pois o apego irresistível às ordens da criação é, essencialmente, o apego dos seres humanos (especialmente os do sexo masculino) às formas de dominação, como alternativa ao medo e ao sentimento de inadequação. Porque é sabido que os homens, que escreveram até recentemente toda a história, sentem que devem provar continuamente o seu valor, que pensam ser a mesma coisa que sua masculinidade. Se lutavam para manter o estado de coisas por meio de sexismo, do racismo e do nacionalismo é por que temiam instintivamente a competição das mulheres, dos homens de outras etnias e de outras nações. É pelo mesmo motivo que recusam-se a trocar o seu Hummer, que epitomiza tão adequadamente a sua masculinidade, por uma scooter ou um carro mais econômico. E, porque não querem ver a sua própria masculinidade de alguma forma colocada em cheque, lutam por um mundo em que não precisem testemunhar o beijo apaixonado de dois barbados ou (talvez pior) de duas mulheres. As ordens da criação acenam com um mundo seguro, em que todas as coisas tem o seu lugar, e é apavorante imaginar que possa ser diferente.
Enquanto isso o Filho do Homem, que morreu virilmente na cruz e procura nos atrair incessantemente para a mesma posição, divulga sem pausa o escândalo e a boa nova de que não há absolutamente o que temer.
São alvos mais fragéis e inesperados, e portanto mais adequados à predação neste momento da história. Hoje em dia, quando acenam com o argumento das ordens da criação, os cristãos estarão fatalmente condenando a conduta homossexual ou asseverando o seu direito de explorar os recursos do planeta.
Quando o relato de Gênesis deixa claro que Deus criou a mulher para o homem, o que pode haver de mais contrário à disposição inicial das coisas do que a união sexual entre pessoas do mesmo sexo? Se Jesus disse do divórcio que "no princípio não era assim", o que teria dito do casamento entre homossexuais?
Numa instância paralela, as ordens da criação são mencionadas pelos protestantes norte-americanos como credencial para explorarem até o sumo os recursos naturais da terra. Quem irá levantar-se para denunciar os abusos do homem contra a natureza, quando Gênesis assegura que Deus lhe conferiu pleno domínio sobre a terra? Como condenar os desmatamentos, a extinção escandalosa das espécies e o aquecimento global, quando a narrativa da criação esclarece que o homem foi criado para colocar o planeta sob sujeição?
Pelo que lêem em Gênesis, Deus não apenas deu ao homem carta branca para violentar a terra; deu-lhe essa missão.
A proliferação da união homossexual é vista como uma ameaça formidável à instituição da família – e a família é a ordem da criação por excelência, a unidade essencial que mantém no lugar os fundamentos do cosmos. Violar essa ordem primordial das coisas é tido como a forma mais abominável de rebelião; não apenas contra Deus (como se não bastasse), mas contra o próprio universo.
Como propõe Edward H. Schroeder em sua análise sobre a questão da ordenação feminina: se Deus permanece sendo o Deus Criador, como não concluir que as mudanças sociais ocorridas no tempo que nos separa de Paulo, mudanças que acabaram possibilitando o status igualitário da mulher, são obra do mesmo Criador? Como não concluir que foram mudanças sopradas na humanidade pelo exemplo singular e subversivo de Cristo? A obra do evangelho não estará derramando sobre o mundo seus inesperados desdobramentos?
“A consequência clara do evangelho,” observa Schroeder, “é que as ordens da criação são impermanentes. Com o tempo acabarão passando, juntamente com ‘o céu e a terra’”. A igreja não deve temer essa impermanência, porque “a própria igreja veio à existência através de um ato de violação.”
A escandalosa verdade é que a liga que sustenta o universo não é a família ou o casamento, mas a misericórdia, soprada por Deus e manifesta pelos homens. De um modo transversal o próprio Jesus demonstrou esse princípio quando explicou que “no princípio não era assim, mas o divórcio foi instituído por causa da dureza do coração de vocês”. Em outras palavras, ele está revelando que o divórcio foi instituído, incrivelmente, por uma vitória da misericórdia contra a ordem da criação. Está longe de ser uma solução ideal e não estava prevista na ordem original das coisas, mas é uma resposta da graça diante da irreversível complexidade da condição humana.
Desde a cruz a condição humana imergiu em muitas camadas adicionais de complexidade. Porém a misericórdia tem continuando a violar, de forma sistemática e sempre escandalosa, as ordens da criação. Quando a sua obra estará concluída? Talvez no momento em que cumprir-se por completo a profecia de Paulo, e em Cristo não houver mais judeu e grego, civilizado e bárbaro, escravo e livre, homem e mulher.
Pois o apego irresistível às ordens da criação é, essencialmente, o apego dos seres humanos (especialmente os do sexo masculino) às formas de dominação, como alternativa ao medo e ao sentimento de inadequação. Porque é sabido que os homens, que escreveram até recentemente toda a história, sentem que devem provar continuamente o seu valor, que pensam ser a mesma coisa que sua masculinidade. Se lutavam para manter o estado de coisas por meio de sexismo, do racismo e do nacionalismo é por que temiam instintivamente a competição das mulheres, dos homens de outras etnias e de outras nações. É pelo mesmo motivo que recusam-se a trocar o seu Hummer, que epitomiza tão adequadamente a sua masculinidade, por uma scooter ou um carro mais econômico. E, porque não querem ver a sua própria masculinidade de alguma forma colocada em cheque, lutam por um mundo em que não precisem testemunhar o beijo apaixonado de dois barbados ou (talvez pior) de duas mulheres. As ordens da criação acenam com um mundo seguro, em que todas as coisas tem o seu lugar, e é apavorante imaginar que possa ser diferente.
Enquanto isso o Filho do Homem, que morreu virilmente na cruz e procura nos atrair incessantemente para a mesma posição, divulga sem pausa o escândalo e a boa nova de que não há absolutamente o que temer.
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